terça-feira, 8 de dezembro de 2009

|::| Desracionalizado

É quase como se chovesse. As minúsculas gotas parecem se rebelar contra aquela lei incontornável que nos liga a este chão. Eu estou voltando. Aquela sensação de "quase chegando" vai pedindo que os passos ganhem ritmo e rapidez. "Aceleração" é a palavra que descreve este momento. Estou voltando. Andando. Quase correndo. Pela calçada. Quase chovendo. E carros passando.


Alguém, de dentro de algum veículo, joga uma latinha de cerveja amassada que cai e quica logo à minha frente. Entendo bem pouco sobre pessoas que jogam latas pra fora de seus carros. Entendo bem pouco de pessoas em automóveis. Acho que entendo bem pouco de pessoas.

Tem lixo sobre a calçada. Sinto que estou ficando encharcado por essa chuva que molha bem mais por ser tão fina. Sei do meu despreparo e da ineficiência dessa fraca e flácida razão. Afinal, depois de tantos milênios, é bem pouco provável que eu seja mais do que um grupo de emoções e instintos pouco controláveis. Mas sempre me orgulho dessa maquiagem construída e refinada por tantas gerações que me dá alguns poucos instantes da frágil racionalidade que se dissipa nervosamente nos momentos em que mais preciso de controle.

Estou bem perto. Pego um elevador. Sozinho. Tem uma câmera que me registra. Tem um espelho que me duplica, apenas por instantes. Estou no segundo andar, a oito passos da porta. Já vou pegando as chaves na mochila. Respiro, abro a porta e entro. Estou de volta. Em casa. E sei que, afinal, sou bem pouca razão e me contento fazendo a minha parte nesse jogo de esconder o que somos.

sábado, 19 de setembro de 2009

|::| Escritor

As variações de humor são constantes. Talvez como acontece com qualquer um. A diferença está no fato de que ele está atento, e percebe. Presta atenção àquele sobe e desce emocional tão frequente e eficientemente oculto à maioria dos normais. Eles não estão atentos, e não percebem.

Alcançar o equilíbrio deveria ser parte de suas buscas existenciais? Ele não sabe se é assim que deve ser. Ele sequer sabe se existe algum dever. Ah, mas ele gostaria de saber, sim, às vezes, já que de uma hora pra outra ele percebe que se diverte na escuridão, tateando à procura de perguntas, de respostas, de sentidos e motivos. As coisas são boas. As boas coisas são gostosas. E ele também se delicia com elas. Nem sempre, mas de vez em quando, sim, ele se delicia com todas aquelas expectativas de descobertas.

É, quem pode responder? Por que ter boas perguntas? A quem perguntar? Ele sempre se confunde, de vez em quando, quando para pra pensar. Ou melhor, quando pra pensar ele para. Ele não sabe explicar, obviamente, mas sente uma agradável sensação toda vez que consegue aguentar o peso de uma nova pergunta sem resposta.

Ninguém sabe, mas ele preferiria ser menos irritante. Imagina que seria mais fácil não perceber, e apenas ter o dever de permanecer ligado àquelas dívidas herdadas que tornam a todos, ou melhor, a quase todos, escravos de si mesmos. Se bem que ele se questiona se é realmente possível não ser escravo de si mesmo. E sim, ele quer acreditar que é possível, pois a partir de sua lógica, que é fraca, mas nem por isso menos lógica, percebe que o carrasco e o escravo são a mesma pessoa. E não são? O herói e o vilão, seus anjos, seus demônios, seus bons e maus deuses, são sempre versões de um mesmo ser mediano que caminha impaciente no meio das confusões.

Perder-se no meio do caos é realmente perder-se? Veja só até onde ele vai nessa busca motivada pelo simples fato de que ele está atento. Ele percebe. Ele apenas não entende que... não sei o que ele não entende.

sábado, 15 de agosto de 2009

|::| Talvez

Não sei se brinco de me enganar, se me engano brincando, ou se me engano que me engano. Talvez. Aquela sensação que sobra, depois que os perfumes penetrantes evaporam, depois que escurece, é de falta. De vazio. De desperdício. De decepção.

Talvez eu tenha preferido os enganos. Talvez eu esteja pagando os preços. Os juros, ainda, por ter recebido tanto de uma vez.

É claro, tento entender. Sempre tento. E, sem entender, me desentendo, comigo, com meus enganos, com meus ganhos, talvez.

Será que sou tão cego? Será que sou tão surdo? Porque quanto mais tento ver, menos vejo. E como tenho tentado ouvir, mas não ouço. Ouço nada, e vejo nada. Nenhuma intenção, nenhuma vontade, nenhuma mudança. E se só eu me enganar? Basta? E se só eu me bastar? Basta?

Ah, como eu me engano. Sim, como eu me engano!

Será que isso é tudo? Será que é só isso? A parte que me cabe, a herança a que tenho direito, o presente que recebi, é isso? Tal vezes em que são feitas brincadeiras de mau gosto.

Ou eu fecho os olhos e me esforço pra continuar enxergando o que não está mais à minha frente, ou eu abro os olhos e me esforço pra viver sem aquilo que está só na minha mente.

Ah, como eu me engano. Ah, como eu me canso.

E se o sábio estiver certo, e se é sábio, certamente estará, havendo tempo pra tudo, a hora vai chegar. Porque esperar, mesmo sentado, até mesmo deitado, cansa.

terça-feira, 2 de junho de 2009

|::| Antropologando no Hospital

Não. Obviamente não é agradável passar um dia no Hospital. Ainda mais quando não é você o doente. Se fosse, bastaria se contorcer como uma minhoca prestes a perecer num anzol, gritar como uma maritaca que cheirou cocaína, e torcer, como um corintiano apaixonado na final da série B, para que algum médico desavisado se sentisse comovido e injetasse em você um daqueles remédios pra dor de cavalo. Isso o colocaria naquele mundo de sonhos silencioso, onde o tempo passa num abrir e piscar de olhos. E você acordaria alegremente zonzo com uma enfermeira simpática (sou politicamente correto, vocês sabem, né?) perguntando se você prefere sopa de ervilha ou creme de mandioquinha com cogumelos.

Infelizmente, não foi o meu caso. Movido por aquela chama de compaixão que arde dentro de todos nós, candidatei-me a ser uma espécie de personal acompanhator plus 2000 da vizinha sozinha e velhinha que mora no apartamento de cima, a quem eu só conhecia pelos sons feitos por sua bengala agredindo o chão, que, no caso, é o meu teto.

Ela escorregara enquanto tentava salvar um vaso de flores depois que ela tropeçou, perdeu o equilíbrio, esbarrou num pratinho de enfeite que recebera de presente da bisneta, bateu com o pé sem querer numa cadeira que tombou, chocando-se com a mesinha onde fica o vaso que finalmente foi salvo enquanto ela tentava se equilibrar. Ela não salvou o pratinho feio da bisneta, fato que contribui diretamente para a melhoria do mundo, porque, convenhamos, esses pratinhos não servem pra nada, a não ser que como a rainha dos baixinhos você também veja duendes, e ainda dê de comer a eles. Penso não ser o caso da vizinha de cima, já que após me confundir com seu marido falecido várias vezes, passei a desconfiar de que além de colecionadora de pratinhos, ela também é míope, bem míope e, agora, temporariamente perneta, já que no fim das contas, nesse processo desastrado e desastroso, ela torceu o pé, quebrou três costelas e a unha do mindinho da mão esquerda.

Depois de ouvir um som diferente, atípico e não similar às pancadas da bengala da vizinha sozinha do apartamento de cima, resolvi subir e descobrir o que houve. Descobri. Descobri o que houve, descobri o que ouvi, e também descobri que a curiosidade não é boa conselheira, pois nessa brincadeira de detetive eu fui o primeiro a atender os gemidos da vizinha. Isso me colocou, inevitavalmente, devido ao meu bom e quente coração, na posição de ajudá-la a ir até o hospital mais próximo. Voltei rápido para o meu apartamento, peguei um livro, meu ipod, meu RG, meu cartão de crédito, uns cartões de visitas, meu celular e uma máscara, pra me proteger da nova gripe mortal e do cheiro do hospital.

Chamei um táxi, coloquei a vizinha numa cadeira de rodas aqui do condomínio, e a levei até o carro. Entramos e fomos. Chegando ao hospital, fui até a recepção pra entregar os documentos da vizinha e acertar as coisas para agilizar seu atendimento. Alguns minutos depois, a vizinha foi levada por umas pessoas estranhas todas de branco, e eu fiquei algumas horas esperando enquanto ela era submetida a uma série semi-interminável de exames. Depois ela me contou que passara por torturas, que colocaram uma luz forte na sua cara e perguntaram sobre sua infância, atiraram raios supersônicos nela, apertaram seus seios, enfiaram veneno na sua nádega esquerda, implantaram um chip na direita, escutaram seus pensamentos numa máquina que girava ao seu redor e que ainda perguntaram se ela usava algum tipo de medicamento.

Uma mocinha guti guti chegou e se sentou ao meu lado. Endireitei a coluna, lembrando da minha vó que sempre diz "mulher gosta de postura ereta!"... Olhei rápido pra ela e percebi que rolou uma troca energética. Quando eu ia fazer um comentário cult sobre o estado metereológico de São Paulo, uma mulher de branco, talvez uma enfermeira, talvez uma assistente de enfermagem, ou talvez uma mulher de branco, apenas, gritou um nome, que logo percebi que era da mocinha ao lado. Ela se levantou, olhou pra mim com um olhar "me espera na saída", e caminhou até a mulher de branco.

Com preguiça de ler, e vendo que já havia ouvido todas as mais de 20 mil músicas do ipod, resolvi praticar uma das artes antigas, obscuras e místicas da antropologia: escutar as conversas alheias. Foi aí que descobri coisas incríveis que acontecem num hospital.

Por exemplo, percebi que é o melhor lugar do mundo pra você descobrir tudo sobre a vida das pessoas. Os médicos e enfermeiros ficam falando alto coisas como: João, desde quando você tá com diarréia? Márcia, a flatulência é constante? Pedro, esse hálito putrefato é persistente? Joana, de que cor está seu catarro?....

Uma simpática senhora sentou-se perto de mim e puxou conversa. Disse que estava lá no hospital pela quarta vez na semana. Segundo ela, suas dores eram "combinadas". Tipo assim: na segunda dói o pé direito e o ombro esquerdo. Na terça, dá dor de estômago e de cabeça. Na quarta, dóem as juntas das pernas, e os ouvidos. Na quinta, é a vez dos dedos do pé e do cotovelo. Na sexta, ela chora com as dores da artrose do braço direito. No sábado, ela disse que descansa. E no domingo faz dança de salão. Dessa vez ela estava ali devido a uma nova dor. Desconfiava que havia quebrado as costelas dançando salsa com um tal de Ruan. Tinha um filho e uma filha. Os dois envolvidos com a área da química: a filha, engenheira de uma multinacional, e o filho, dependente, numa clínica de reabilitação. Ela estava começando a contar do ex-marido quando foi chamada por outra mulher de branco.

Poucos minutos depois, chegou um rapaz mancando. Disse pra atendente da recepção que precisava de um ortopedista, pois havia torcido o pé jogando vôlei. Simpático, sentou-se e foi logo puxando assunto com todos à volta. Contou que estava com uma dor lancinante, e que estava com medo de nunca mais voltar a andar, pois lera na internet, numa comunidade chamada "eu torci meu pé e tive que amputá-lo" que isso acontece de vez em quando. Contou que nunca sentira tanta dor e que no começo pensou que estava morrendo. Um senhor sentado próximo ao rapaz contou que já havia torcido o pé 13 vezes e que não era nada demais. O rapaz arregalou os olhos e perguntou se era normal sentir frio depois de torcer o pé. Ao que o senhor respondeu: "sim, quando está frio como hoje, é normal".

Antes de ouvir o restante da história, minha atenção foi desviada para a porta que se abriu. Foi um misto de tristeza e alegria. Alegria porque finalmente a vizinha sozinha do andar de cima estava saindo, e tristeza porque ao lado dela também estava saindo a mocinha docinho de côco. Eu me levantei sem saber se me dirigia à vizinha de cadeira de rodas, ou à mocinha de sapatos vermelhos. Foi aí que escutei uma mulher se dirigindo à mocinha e dizendo: se o mau cheiro e o corrimento persistirem até amanhã, procure um ginecologista.

Foi fácil decidir. Voltei na companhia da vizinha acidentada, feliz da vida por eu ter um coração tão generoso.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

|::| Ma[´]drugada

Estou com medo de dormir agora e perceber, ao acordar, que algo está faltando. Também tenho medo de dormir e ao acordar sentir que algo não está faltando. Toda noite, a morte de como me manifesto agora. Toda manhã, uma leve memória de uma vida que se torna mais vívida conforme as horas do dia passam por mim. Toda noite, uma vida longe dos problemas e dos detalhes que dificultam os meus dias. A cada manhã, a morte daquela vida de sonhos, manifestada nos sonhos. Vida que se recicla e se mantém sempre, parecendo, afinal, ser o início e o fim de todas as coisas. Dela não se escapa. Sua presença sempre está por aí, por aqui, em todos os lugares, brincando com a gente, com as gentes e com as mentes de todas as gentes que olham pra ela enquanto a experimentam. Sempre rindo, e a cada risada uma nova manifestação de sua força. Somos seus escravos e iludidamente imaginamos que ela escorre para longe de nós. Nunca. Tudo o que somos é ela, e enquanto formos algo - e sempre seremos - ela estará presente, viva. Vida viva, sempre viva, sempre vida. Como eu gostaria de saber menos e poder querer, sem sentir que a minha consciência resiste, que as coisas fossem mais claras. Clareza que só procuro porque seu gosto ainda está aqui na minha boca. Tenho medo de dormir e acordar no escuro, descobrindo que o sol mais brilhante da manhã mais clara da estação mais exuberante do ano embaralha todos os meus pensamentos e me faz duvidar de quem sou. Se é que sou alguma coisa. Talvez a clareza da noite seja como a bravura de um fraco lutador um dia antes de se inscrever numa competição para a qual desconfia estar despreparado. Tenho medo de acordar e fazer escolhas diferentes das que eu quero fazer agora. Tenho medo de acordar muito mais fraco. E descobrir, mais um dia, que sou incapaz de ser diferente daquele que sempre acabo sendo no dia seguinte.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

|::| Maya

Ela tirou férias de mim. Saiu assim meio sem avisar, como quem vai ao supermercado da esquina comprar maçãs e demora o suficiente pra que você calcule quanto tempo se passou. Eu já imaginava que era ela quem me soprava os tons e as rimas de todas as canções que inventei. Agora sei que os sabores, as cores e os aromas eram todos artificialmente injetados em mim, dando a falsa sensação de que o mundo é agradável.

Ela tirou férias de mim. Saiu assim meio devagar, como quem se levanta no meio da noite sem acordá-lo. Eu já imaginava que ela era leve como aquele pedaço de algodão que cai da nossa mão antes de tocar a ferida. Agora sei que os sons eram delicadamente colocados em meus ouvidos, dando a falsa sensação de que havia silêncio.

Ela tirou férias de mim. Saiu. Eu já imaginava. Agora sei.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

|::| Ipodiando a la Saramago

Por que preciso de uma namorada se tenho um Ipod, pensava Sócrates enquanto fazia a barba em frente ao espelho embaçado do banheiro público da estação de metrô Sé. Achara uma gilete no lixo da esquina sem saber de sua crise de vocação, Sou uma gilete ou uma faca de açougue. Droga de gilete, cortei a minha pinta. Podia ser pior, disse alguém que acabara de entrar, É, eu podia ter trocado o artigo. Lavou o rosto, guardou a gilete junto com o cortador de unhas enferrujado e a garrafinha de gatorade que costuma usar como pinico improvisado, Tudo serve e o que não serve eu jogo no lixo, era a idéia central de sua filosofia. Foi no lixo que Sócrates encontrou o Ipod. Por que raios alguém joga esse tipo de coisa fora, era a pergunta que martelava sua cabeça.

A manhã tinha sido clara, ensolarada, quente, e fria quando o vento batia. Agora, meio-dia, o maltrapilho Sócrates olhando pro sol, imaginando de que serviria sua vida se encontrada num latão de lixo, Quem me pegaria e levaria consigo. Ninguém, talvez, ou mendigo, talvez, ou criança curiosa, talvez, ou o IML. Com os fones do Ipod nos ouvidos, Sócrates sente-se interiormente expandido, como se ao pressionar o play abrisse portas internas infinitas que lhe tornam grande, bem maior do que supusera. Corredores embaralhantes, pensamentos viajantes e viajantes pensantes que param frente às bifurcações da mente e decidem coisas opostas. Sem saber, ele sabe demais sobre os desejos que tantas vezes bifurcam os caminhos tranquilos suavemente desenhados por aquele eu lobo em pele de cordeiro que brinca com a gente.

Hoje ele encontra nos lixos os tesouros que anteriormente neles jogara. Primeiro pensara que havia vivido em descarado desperdício. Hoje sabe que seu lixo era o tesouro dos outros. Meu precioso, meu ipod, repetia para si, sabendo muito, mas muito pouco sobre seu tesouro mais recente. Ele sequer imagina que a playlist é limitada. Ele sequer sabe o que fará quando a bateria acabar.

Você sabe. Sim ou não.

sexta-feira, 27 de março de 2009

|::| Táticas de guerra

Toda suada, Maria abre os olhos lentamente, quase com medo de se descobrir em outro lugar. O mundo vai ganhando forma aos poucos. Como se retornando de um transe, ela respira fundo e profundamente forte. Sente-se arrepiada, e puxa o lençol, cobrindo sua nudez; cobrindo-se dele. O pesadelo. Mais uma vez. O mesmo.

As noites de domingo para segunda-feira são sempre assim. Pelo menos desde que começou a lecionar naquela escola de educação infantil. Maria se vê nua, segurando um giz branco que escorrega enquanto ela tenta, em vão, escrever seu nome numa lousa gigante, talvez infinita. Ela percebe que está sendo encarada por milhares de alunos, de todos os tamanhos, crianças, adultos, jovens, idosos, altos, magros, gordos, baixos, loiros, morenos, pretos, pardos, vestindo roupas, uniformes, calças, saias, vestidos, bermudas, camisetas, vestindo nada. Sente-se observada pelo mundo todo, e pressionada a realizar talvez uma das mais simples tarefas do mundo: escrever seu próprio nome. Mas a lousa está escorregadia. Parece molhada. Maria tenta em vão usar o giz, que fica coberto por uma substância viscosa e vermelha. "É sangue!", é o grito que Maria solta logo antes de acordar.

Semanalmente Maria está lá no consultório do seu terapeuta, contando seu pesadelo, novamente, enquanto ele a olha com uma expressão que parece um misto de tédio e fome. "Nunca mais marco consulta para o meio-dia", é a única coisa que passa pela cabeça dele. "Como era seu relacionamento com seu pai?". "Doutor, já não falamos disso na semana passada?". "Sim, mas repita por favor. Olhe para estas figuras e tente lembrar-se de situações marcantes que viveu com ele". Maria não vê sentido nessa palhaçada, e só retorna porque a escola a obrigou, depois que ela passou a apresentar uma certa violência em sala de aula. Após uma prova oral da qual vários alunos saíram com sérios distúrbios de comportamento, Maria foi chamada à direção e ameaçada de ser demitida caso não procurasse ajuda profissional. Maria se defende dizendo que o problema está na péssima educação que os alunos recebem em casa, o que exige da parte do professor um comportamento mais rígido. Segundo ela a raiz do problema é a televisão. Estranho, já que ela própria é viciada em TV. Desenvolveu até uma habilidade paranormal: é capaz de pressentir o instante exato em que um programa retorna dos comerciais.

Maria não entende porque as pessoas a acham tão estranha, afinal, considera-se uma ótima professora. Está sempre a par de todas as novas táticas pedagógicas. Faz uso da tecnologia para tornar suas aulas mais interessantes. Tem orkut, blog, myspace, facebook, msn e multiply. Recentemente passou a exigir que seus alunos usem o Twitter, e que façam pelo menos 10 postagens por dia, inclusive nos fins de semana.

O que ninguém entende é que Maria desenvolveu técnicas elaboradíssimas de contenção da poluição sonora. E tudo tem um preço, claro. "Criançada, hoje vocês preferem brincar de estátua ou de vivo ou morto?".

quarta-feira, 18 de março de 2009

|::| Sinais do fim

Ontem foi dia de prova oral na escola do João. A professora, que passara pelo menos os últimos sete dias treinando uma cara bem feia e, segundo alguns alunos, nem precisava ter treinado tanto, convidou todos a saírem da sala. A cada dois minutos um entrava e outro saía, seguindo uma ordem um pouco heterodoxa: do maior para o menor. 

O primeiro a entrar foi o Silão. Garoto forte, destemido e temido por todos os outros. Corria o boato de que o Silão já tinha andado de metrô sozinho, e não na linha verde..., mas na linha vermelha, aquela que liga o Palmeiras ao Corinthians. Do pátio ouviu-se um grito que arrepiou a todos. "Foi o Silão gritando?!", era o comentário que começou a correr entre os alunos. Sim, foi ele mesmo. Saiu da sala correndo para o banheiro. Os alunos, que já não estavam muito tranquilos, é óbvio, já que era uma prova oral, agora estavam à beira de um ataque cardíaco fulminante. Afinal, o mais valente de todos parecia ter sido dobrado e amassado como um pedaço de papel de seda. 

A fila foi andando, sempre do maior para o menor. Ouvia-se gritos, gemidos, ranger de dentes e trovões vindos do interior da sala. Já tinha aluno comentando que sua mãe dissera que isso era sinal do fim do mundo. "E o que ela disse pra fazer nessa situação?", alguém perguntou. "Não sei, acho que ela nunca passou por isso".

Aqueles que saíam da sala, permaneciam calados, provavelmente sob alguma maldição maligna dessas que se aprende nos cursos para professores. A angústia aumentava minuto a minuto, conforme iam restando apenas os mais miúdos alunos. Imagine o desespero do João, que era constantemente alvo das chacotas de seus colegas por causa do seu tamanho. Ele sabia que seria o último a ser chamado, o alvo da ira final, a vítima derradeira. Embora se julgasse preparado, por ser muito bom em conjugação de verbos, o tema da prova, João já não sabia se sobreviveria à sala. Imaginava-se entrando e vendo a língua de cada aluno pregada à parede, enquanto a professora se dirigia a ele com os olhos saltados, segurando um punhal ensaguentado na mão direita, e um garfo na esquerda. 

"Joãoooooo!". De repente, o aluno mais miúdo tremeu ao perceber que havia chegado a sua vez. Olhou para os lados, na esperança de haver outro João na sua turma. Mas não havia. Era ele, o João. João Pequeno. João, cara de anão. 

Respirou fundo. Segurou a maçaneta. Abriu a porta. Fechou os olhos e entrou. Sentiu uma moleza súbita. "João, você tá bem?". Era sua professora perguntando enquanto o abanava com uma folha de cartolina amarela. "Você tomou café-da-manhã, João? Ou tá caindo de maduro mesmo?". Ele olhou pra professora, levantou-se rápido, e tentou endireitar sua postura, fazendo cara de valente, embora por dentro estivesse se sentindo como um cordeiro em dia de sacrifício na Jerusalém antiga.

"João, vamos à prova, tudo bem?". Não, não estava bem. Se ela demorasse um pouco mais, ele molharia as calças. "Conjugue este verbo", disse a professora enquanto apontava para uma folhinha de papel. João inspirou o máximo que pôde, e começou:

"Eu excomungo.  Tu excomungas.  Ele excomunga. Nós excomungamos. Vós excomungais. Eles excomungam".

segunda-feira, 9 de março de 2009

|::| Contos do Paraíso

- Bom dia!
- Oi... bom dia! - respondi meio sem vontade.
- Você ficou sabendo?
- Do que? - agora, muito sem vontade, e levemente irritado. Afinal, a vizinha do 1503, novamente, infringia o código da boa conduta em elevadores, que em seu primeiro parágrafo proíbe expressamente as conversas. 
- Não ficou sabendo, mesmo?
- Claro que fiquei sabendo! Sou onisciente, lembra? Além disso também consigo mexer as orelhas enquanto bato palmas. Você consegue? - Ela me olhou com uma cara meio amarrada, mas a vontade de fofocar era tanta que engoliu o orgulho e engatou: Você não ficou sabendo da última da Júnia, do 770?

Júnia é a moradora mais famosa do Condomínio Paraíso. Não tenho certeza se já cruzei com ela no elevador, ou na garagem, já que não a conheço e, ao contrário da vizinha do 1503, sou muito bem educado: não falo com pessoas no elevador.

- A minha faxineira contou que ficou sabendo na última reunião da FAPOTROCA, numa conversa informal, que a Júnia está planejando uma nova morte.
- Fapotroca?
- Sim! Faxineiras portadoras de transtorno obsessivo-compulsivo anônimas.
- Ah.
- Só "ah"? Não vai dizer nada sobre a Júnia?
- Tipo o que?
- Ah...
- Ah?!
- Ah, não sei. Mas não acha estranho que ela esteja tentando de novo? Não faz nem três semanas que morreu da última vez.

Esqueci de mencionar esse fato curioso: dizem que a Júnia já morreu mais de trinta vezes. Já se enforcou, já se afogou na piscina, já morreu dormindo, fazendo musculação, tomando banho, amassando pão, torcendo roupa, lavando a louça; já cortou os pulsos, o pescoço, a virilha; já enfiou uma faca na barriga, uma tesoura, um canivete, uma colher de pau; já teve overdose por anti-depressivos, antioxidantes, alcool, óleo de cozinha, querosene; já engasgou com moedas, com feijões mal cozidos, com sementes de abacate e até com a escova de dente. A lista é longa.

- Vai apostar dessa vez? - Perguntou a vizinha, arregalando os olhos e parecendo ainda mais assustadora do que da última vez em que tentou assustar os moradores usando uma fantasia de Bozo.
- Não.
- Não?!
- Sim. É o que eu disse. Não vou!
- Mas a aposta tá acumulada há sete mortes!

O síndico, que é adepto da idéia de que os canos reprimem o livre movimento das águas e, por isso, reluta em atender os pedidos desesperados dos condôminos com problemas de encanamento, também é um viciado em apostas. A aposta "como será a próxima morte da Júnia" já está em sua vigésima-nona edição. E há sete mortes ninguém acerta.

- Não. Não vou apostar! - eu disse, enquanto sentia a primeira gota de suor a se formar em minha testa. Eu seria o cara mais feliz do mundo se o elevador fosse mais rápido. Tento não olhar para a vizinha, pra ela não pensar que quero continuar o papo.
- Você acredita em vida após a morte?
- Hein? - Só falta ela me perguntar se torço pro Corinthians. 
- Vi-da a-pós a mor-te! Já ouviu falar?
- Ah... sei. Me ligaram um dia desses oferecendo um plano especial de telefonia móvel pré-paga em que você ganha o dobro de créditos se morrer segurando o celular.

Antes que a vizinha tivesse tempo de reagir, o elevador parou no térreo e eu saí rapidamente. Levei um susto ao ver que havia dezenas de pessoas na rua, olhando pro alto. Agucei os ouvidos e escutei: "é ela!". Ainda tive tempo de olhar pra cima, ver algo vindo em minha direção e escutar o síndico gritando "Acertei!!! Ela pulou da varanda!".

Droga! Deixei o celular carregando!

quinta-feira, 5 de março de 2009

|::| Autoajuda de quinta

Peço licensa pra falar um pouco. Quer me escutar?

Consciência. Consciência social. Consciência política. Consciência ecológica. Consciência moral. Consciência espiritual. Autoconsciência. Por aí vai. Consciência de si, do mundo, do espírito...

A busca por agir, pensar ou sentir com conhecimento, com ciência, tem me levado a caminhar cada vez mais no escuro. Num escuro consciente, não posso negar, mas nem por isso menos escuro. Talvez eu tenha descoberto que o autoconhecimento é a luz que me faz ver que a escuridão existe. Vejo que a confusão existe. A dúvida existe. A incerteza existe. Mas estou certo de que se é mais feliz nesse escuro consciente do que naquela escuridão não percebida.

Não se engane. Todos estamos mergulhados na escuridão. Mas a escuridão não é necessariamente ruim. Ela é simplesmente a condição desta nossa existência. Há muitas coisas que são boas no escuro. Aceite isso. Admita.

O autoconhecer-se de que tanto se fala é um processo complicado de conhecer, cada vez mais e, por isso mesmo, cada vez menos a relação que existe entre o interno e o externo. Não sei se existe um eu interior, assim como não sei se existe um eu exterior. O que sei é que existe um fora e um dentro que estão numa constante interação que, frequentemente, é completamente desconhecida por nós. Essa falta de conhecimento, ou melhor, essa falta de ciência a respeito dessa interação nos leva a uma subutilização de nosso potencial para a vida.

Enquanto inconscientes do nosso potencial, o medo é inevitável e a coragem é bastante limitada. Limitamo-nos então a construir as nossas próprias prisões, cadeias e cercas. Você pensa que a sociedade o reprime? Você pensa que a sua família o oprime? Você pensa que a igreja o prende? Será?

O interessante deste meu processo de construção da consciência é que eu percebo que quanto mais me conheço, quanto mais tenho ciência de mim mesmo, mais incompreensível eu me sinto. Parece uma tremenda bobagem dizer tudo isso, mas conhecer a minha própria escuridão, que aqui não tem qualquer sentido negativo, estranhamente me conduz a ver, cada vez mais, que há muito de mim do lado de fora, assim como há muito do fora dentro de mim. E, nesse caminho, cada vez menos tenho podido culpar qualquer um, ou qualquer coisa, que não seja eu mesmo pelo jeito como experimento a existência. Em outras palavras, quanto mais me conheço, mais me reconheço no mundo e nas pessoas.

Percebe o quanto as pessoas do mundo precisam reconhecer-se umas nas outras? Quantos conflitos seriam evitados se soubéssemos que o lá fora e o aqui dentro são as duas faces de uma mesma moeda que se chama vida? A luta contra a vida é uma luta perdida, e tem consequências dolorosas. Reprimir a vida diminui a nossa capacidade de experimentá-la. Você percebe que a vida é rica, complexa e colorida? Por que lutarmos contra essa verdade?

Quando sabe que está no escuro você aguça a sua percepção.

É o que eu acho, pelo menos.

terça-feira, 3 de março de 2009

|::| Chegou ou saiu?

Ela chega. Toca a campainha. "Sim, é aqui!". Finalmente se encontrou. Cansada e ofegante. Ajeita o cabelo. Penteado novo. "Argh! Não gostei dessa franja". Abre sua bolsa e tira um pequeno espelho, amigo inseparável. "Estou pálida". Passa batom. "Sim... vou arriscar este". Pensa. Pensa. "Não sei..." Pensa em que? Está confusa, tentando se concentrar pra pensar melhor. "Sim ou não? Sim ou não? Sim ou não?!". Ela está diante de um caminho que se bifurca. Não sabe qual escolher. Talvez ela conheça um dos caminhos, mas pelo outro talvez chegue mais rápido. "Acho que ele conseguiu me confundir..." Respira fundo. "E agora?" Ela fecha os olhos. Anda inquieta. Dá passos apressados um pouco sem direção. Está perdida. Claro, depois de tudo, é de se esperar uma certa confusão. "E aí, o que faço?". Pensa em perguntar pra alguém, qualquer um que encontrar. "Sim ou não? Sim. Ou não? Não.... mas... e se... sim?". Olha para uma janela e imagina o que há além dela. "Será que é ali?" Vê uma bela casa. Quase tudo parece diferente da última vez. Mas algo parece familiar. Pensa em desistir de tudo e voltar. "Para onde?" Sente o estômago gelar. "Se não for, vou embora". Ela parece inconsciente da verdade das possibilidades; não sabe que entre o "sim" e o "não", entre o "é" e o "não é", existem infinitos "se's" e "talvez". Talvez por isso seja tão difícil pensar com clareza. Andou tanto que já sente o seu próprio peso. Uma hora atrás o caminho lhe parecia bem mais simples. "Ele tentou explicar tão bem.." Certamente saberia se tivesse sido mais atenta. Não é a primeira vez em que se perde por causa do seu orgulho e de sua pressa. Anda de um lado para o outro. Anda depressa. Ainda se sente atordoada com a explicação que ele deu com tanta paciência. Ela sai.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

|::| Hein?!

Ouvi dizer que o ano está começando hoje.

Hoje cedo fui comprar pão. Na fila, sem nada pra fazer, obviamente, a não ser esperar e ouvir as conversas alheias, escutei o seguinte:

 O senhor possui o cartão de "cliente mais"? - perguntou com muita simpatia a caixa do supermercado ao senhor que estava à minha frente, na fila.
 Não - ele respondeu, solícito.
 O senhor gostaria de incluir o CPF na nota fiscal?
 Não, obrigado.
 Houve algo que o senhor não encontrou em nosso estabelecimento?
 Não. Ou melhor, sim! Eu não encontrei aquele doce de Abricó importado.
 Ah, vou verificar para o senhor - disse a mocinha do caixa enquanto se dirigia a um homem de terno que estava passando por perto.

Enquanto isso, meu vizinho de fila parecia começar a exteriorizar uma certa impaciência. Virou-se pra mim, com cara de que me conhecia há tempos:
 Eu nem gosto de doce de abricó!
 Pois é, né? Tá quente hoje... - foi a única coisa que eu consegui dizer.

A mocinha voltou com cara de médico dando notícia ruim à família de algum doente.
 Desculpe, senhor, mas não temos. Não é época de abricó.
 Mas não é abricó, e sim doce de abricó!
 Pois é, senhor, mas três meses atrás não era a estação de abricó lá no México, de onde a empresa que fabrica o doce importa essa fruta.
 Tá bom, tá bom. Esquece o abricó.
 Senhor, o senhor gostaria de fazer um cartão "cliente mais"?
 Não!
 É rápido, senhor. E dará ao senhor uma série de vantagens!
 Não. Será que você pode passar logo as minhas compras? É que estou um pouco atrasado, sabe?
 Crédito ou débito?
 Débito.
 Pode digitar a sua senha, senhor.

Dirigindo-se ao rapaz que o ajudava a colocar suas compras nas sacolinhas, o senhor, que já não parecia tão atrasado, disse:

 Até que enfim o ano está começando! - "Meu, como assim? Até ontem era o que!?", pensou o rapaz, enquanto o senhor prosseguia. - O ano está começando hoje! Enquanto o carnaval não passa, nós, brasileiros, vagamos fora do tempo e do espaço. Que nem o pessoal da ilha de Lost, sabe?
 O que?
 Você não tá vendo a quinta temporada?
 Não!
 Ah, desculpe... O importante é que o carnaval passou. Aquele povo suado, balançando tudo... Tudo mesmo, sabe? Balança bem mais quando não tá preso, já reparou? Mas enfim, o ano só começa no Brasil depois do carnaval, sabia?

O rapaz não sabia bem se concordava ou se fazia cara de paisagem enquanto torcia para aquele louco pegar suas sacolas de compras e ir embora logo.

 Eu não sei, não...  continuou  mas após juntar algumas peças, estou começando a achar que estaremos a salvo do fim do mundo aqui no Brasil. Não é incrível?  O senhor parecia cada vez mais empolgado com a conversa, que neste momento tava mais pra monólogo. – Pense comigo. Deus é brasileiro. Tão dizendo que o mundo vai acabar em 2012. O ano aqui só começa depois do carnaval. Percebe? Percebe?  perguntava enquanto olhava eufórico para o rapaz, que a essa altura suava frio tentando encontrar um meio de sair correndo sem dar muito na cara.  Se tivermos sorte, e teremos, já que Deus é brasileiro, o mundo vai acabar antes do carnaval de 2012! Enquanto estaremos num limbo atemporal entre o fim de 2011 e o carnaval de 2012, o mundo vai estar acabando. Pense só! Vai ser só festa! Quarta-feira de cinzas com cinzas do mundo acabado. Imagine! Nada de dívida externa e de argentinos. Nem filmes franceses e nem bandinhas inglesas esquisitas. Seria o céu, não acha?  perguntou o senhor, sorrindo e de olhos fechados, sem saber que o rapaz havia escapado.

Peguei minhas sacolinhas e também dei um jeito de ir embora antes que ele abrisse os olhos e inventasse de procurar um novo ouvinte. Afinal, fiquei curioso pra conferir a quinta temporada de Lost...


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

|::| Googlando

- Mãe, como eu nasci?
- Procura no Google!
- Procurei, mas o que é uma vagina, mãe?
- Procura no Google! Eu já disse!
- Mas mãeee, como vou ter filhos se não tenho uma vagina?!
- Marcos Henrique!!! Quantas vezes vou dizer pra procurar no Google? 
- Mas, mã....
- E além disso, cansei de dizer que você é menino. Escutou? ME-NI-NO! Procura aí no Google pra ver o que isso significa!
- Paiê! Ô paiê! Como eu nasci?!
- Amor, explica aí pro garoto!
- Eu não, já disse pra ele procurar no Google! Não era pra isso o computador novo?
- Mas... mor, você não acha meio arriscado esse negócio de internet?
- Quem disse isso? Você leu no Google?
- Não, amor. Mas....
- Se não foi no Google, foi onde, então?
- Ah, acho que vi na...
- TV? Ah, vai ver se eu tô lá no Google, vai? E me deixa em paz que eu achei os capítulos da novela no youtube.

Há anos Marcos debatia-se com a sensação de que havia algo de errado com ele. Sentia um vazio estranho que não cabia no campo de buscas do Google. Pra desespero de sua mãe, que depois de descobrir a Wikipedia tornou-se a rainha da sabedoria, Marcos ia minguando, desaparecendo. Diante da clareza arrebatadora do Google, ele era apenas um nada, um dvd virgem, um hard disk danificado. 

"Você precisa passar mais tempo com ele, Marquinhos", dizia sua mãe, referindo-se ao Google, claro. Tentativa após tentativa, sentado diante do computador, com as mãos trêmulas sobre o teclado, Marcos angustiava-se por não encontrar as palavras corretas capazes de expressar aquele buraco em sua mente. "Como vou procurar por algo que nem sei nomear?" Dia após dia, sua tristeza aumentava assim como aumenta a capacidade de armazenamento de um gmail. 

Criou uma comunidade no Orkut: "Eu já me procurei no Google". Era o único membro. Solitário. E os outros? Havia outros? Por anos Marcos acreditou estar sozinho. Voltava do colégio e fechava-se no quarto. Lia muito, pensava muito, buscava muito, teclava muito e descobria pouco sobre si. Desenvolvera uma estranha obsessão: toda noite, logo antes de dormir, ele silenciosamente ligava seu notebook e digitava "Marcos" no campo de buscas do Google. Fazia isso com intensa expectativa. Achava milhares de links que pesquisava de forma apreensiva, sempre imaginando o que faria quando topasse com ele mesmo. Mas não estava no Google. Não ele. Outros Marcos, sim, mas não ele. 

Enquanto seus colegas de classe pareciam estar florecendo, multicoloridos, preenchidos por aquela empolgação de quem está começando a se desconfiar invencível como todo bom adolescente, Marcos olhava-se no espelho e parecia enxergar uma folha murcha, seca, retorcida. Até já sentia-se velho e doente. Hipocondríaco, sempre após o almoço, ia com sua mãe até o computador, sentava-se ao lado dela, respirando com dificuldade, enquanto ela lia, na wikipedia, as descrições das doenças que o acometiam naquele dia. "Olha aqui, eu não disse que a gente ia encontrar um tratamento?" dizia sua mãe, esboçando um tímido sorriso que escondia sua imensa sensação de poder toda vez que encontrava algo na wikipedia. 

Certamente o que torna a história dos primeiros 18 anos da vida de Marcos tão interessante não é a felicidade. Após uma bela festa surpresa, ele trancou-se em seu quarto, ligou seu notebook, tirou de debaixo do colchão aquela faca mais afiada que roubara da cozinha dias antes, e cortou seu pulso direito. Observou atentamente aquele líquido de cor extraordinária às vezes escorrendo calmamente, às vezes fugindo de seu pulso em rápidos esguichos nervosos. Após alguns instantes em que sentiu como se o tempo houvesse parado enquanto viajava para mais longe de tudo o que conhecia, Marcos voltou sua atenção para o pulso esquerdo. Pensou rápido, e soltou um sorriso triste enquanto aquela lâmina um pouco ensanguentada perfurava sua pele. 

Com as duas mãos sobre o teclado, Marcos esperava encontrar as últimas palavras que digitaria, na expectativa de conseguir, afinal, encontrar suas respostas. Com os olhos fixos no espaço em branco do campo de buscas do Google, Marcos sentia-se também cada vez mais um espaço vazio à medida que seu sangue gotejava sobre o notebook. Sentiu uma leve fraqueza. Tudo escureceu por um segundo e quando tornou a abrir os olhos, Marcos teve o insight de sua vida! Rapidamente digitou "o que fazer para não morrer após cortar os pulsos". Calmamente procedeu de acordo com as orientações encontradas no Google. Embora sentindo-se bastante fraco, o sangramento parou e Marcos sentiu que sobreviveria. 

Antes de seus pais desconfiarem que algo estava errado e arrombarem a porta do quarto, Marcos ainda teve tempo de entrar no Orkut e ingressar na comunidade "Eu odeio cortar os pulsos". 

Sobre o insight:  Marcos percebeu que ele e o Google eram iguais, dotados de uma infinita profundidade escondida atrás de um espaço vazio.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

|::| Adeus, Tíxia!

Sempre desconfiei que meu apartamento era pequeno demais para ela. O carpete preto e velho, as paredes clamando por uma nova pintura, os livros empoeirados e a geladeira que não é nenhuma Brastemp. Eu nunca me preparei para recebê-la. Foi tudo muito rápido. Quando me dei conta, ela já estava me olhando com aquele ar distante, indiferente, parada perto da porta, à beira de seguir com sua busca incessante por respostas. 

Tentei seguí-la. A cada metro, Tíxia olhava para trás, talvez sem saber se devia prosseguir em sua jornada, ou talvez apenas para gravar minha imagem em sua mente enquanto eu a observava de longe. 


Ainda tive tempo de fotografá-la. Meus amigos já estavam a me chamar de louco, lunático. Ouvi muitos comentários, alguns até maldosos. "O que? Uma lagartixa chamada Tíxia? Você tá louco?"... "Você tá é precisando de uma namorada de verdade! Vai esquecer rapidinho dessa Tíxia"... "Você lá tem idade pra ter amigos imaginários? E ainda com esse nome estranho?!" Mas, é claro que todos estavam errados. Minha clareza mental prossegue incorruptível. E aí está a prova da existência da Tíxia. Teve gente até achando que a Tíxia era fruto de algum tipo de dupla personalidade que me acometeu após alguma das minhas batidas de cabeça frequentes enquanto lavo a louça, ou ainda a manifestação do meu alter ego. Para todos esses que duvidaram de mim, riram e me humilharam em praça pública, fiz questão de eternizar em jpeg a presença da Tíxia.

Tíxia Catarina, uma lagartixa de excelência. Nunca vou esquecer dos dias em que ela me iluminou com sua presença imperceptivelmente prazerosa. Ela sempre deixou bem claro sua aversão à rotina. Certamente a monogamia nunca foi seu valor dominante. Mesmo tendo vencido sua dificuldade para estabelecer relacionamentos duradouros, Tíxia é uma Largatixa do mundo, cosmopolita, à frente do seu tempo. Enquanto suas colegas comiam mosquitinhos, a Tíxia já estava a devorar pernilongos. As outras escalavam portões enquanto Tíxia já subia alto nos arranha-céus de São Paulo. 

Tíxia, uma lagartixa malandra. Nem bem me virei e ela já estava lá, esparramada, à beira da porta do vizinho. Acreditam? Sim! Do vizinho! Se não acreditam, vejam a foto!


Tíxia deixa, portanto, meu apartamento para viver novas aventuras. Deixa também muitos fãs desconsoláveis. Mal tornou-se a estrela deste blog, e ela já estava pensando em vôos mais altos. Quem sabe ela não aparece no blog do vizinho?! Ou ainda no blog da esquina, aquele da fofoca e fifim do mundo? 

Esperemos. Em último caso, vê-la-emos no juízo final que, afinal, tá perto, não é?

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

|::| Relativizando-me

Mas vamos voltar ao trabalho. 

Ao trabalho de reconstrução e reforma incessantes de minha consciência. Há momentos em que sinto aquela fome por vida e conhecimento que me faz andar até muito longe e voltar, logo depois, mastigando, digerindo, processando experiências e me relativizando. 

O caminho de volta é sempre revelador. Acredito ser essas constantes e cíclicas fugas e voltas a mim mesmo que me fazem cada vez maior. Em cada ida eu me torno um monstro estranho, carregado de conhecimentos rígidos frequentemente desconexos. No retorno vou reposicionando as novidades até ser capaz de me perceber mais rico e interessante. É claro que a cada volta sou parcialmente uma nova pessoa. E de parcialmente em parcialmente, descubro que sou completamente outro. 

Ser outro sem ser o outro, eis um grande segredo que se revela individualmente. Absolutizar na ida, relativizar na volta. À primeira vista, tudo parece ser o que parece. É o tornar a ver que permite a libertação da escravidão das absolutizações, embora tornar a ver não seja o mesmo que um ver de novo passivo. Refiro-me ao exercício, às vezes doloroso, de estabelecer novos relacionamentos entre aquilo que vemos, ouvimos e pensamos, e as outras tantas percepções e compreensões possíveis. 

Relativizar nada mais é do que enxergar os relacionamentos que existem entre todas as coisas. É reconhecer que nada é independente de tudo. Relativizar-me é, portanto, tornar-me consciente das relações que são a matéria-prima para a construção de mim mesmo.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

|::| Voz e violão

Ontem tive o incrível, fantástico, inenarravelmente magnífico prazer total de assistir à gravação de um show do multitalentoso compositor, violonista e cantor João Alexandre, que fará parte de seu primeiro DVD. Embora com mais de 20 anos de carreira, eu só fui "descobrir" o João há cerca de 9 anos. Na verdade, descobri que muitas das músicas que compunham as minhas listas top 10, top 20.. etc, eram dele. Melhor ainda foi estar acompanhado de vários amigos especiais como o Jitomon, Josuélson, Giovanni e Daniel. Poderia ter sido ainda mais legal se outros estivessem ali conosco, como o Alessandro, que devido a um imprevisto não pôde nos acompanhar. Mas, certamente, haverá outras oportunidades. 


Ah... num momento singular de tietagem, ainda tirei fotinhos com o cara. Vai que talento pega, né?


É claro que depois de toda essa propaganda, você que está visitando meu humilde blog sentirá uma vontade incontrolável de também se deliciar com o trabalho do João. Faça esse bem à sua vida! Penso até em postar aqui uma lista com pelo menos as 20 ou 40 ou 60 músicas mais espetaculares, na minha opinião, para que vocês possam ouví-las e concordar comigo quando eu digo que o João rox. Se ainda houver espaço no mundo para se fazer um bom uso da palavra "profeta", eu a aplicaria a ele.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

|::| Tíxia, a lagartixa

Decidi escrever um livro. Alguma sugestão?
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Após ter meu apartamento invadido por uma simpática lagartixa, que a partir de agora atende pelo nome de Tíxia Catarina, enxerguei o real sentido do mundo e decidi escrever um livro.

É claro que vou começar falando da Tíxia. Ela é um pouco malandra, entende? Cresceu por aí. Sem eira nem beira. Órfã, aos vinte e três dias de idade já havia sido expulsa a vassouradas pela dona da loja da esquina. Nunca entendeu porque mesmo dando facilmente um pedaço de si, o rabo, era incapaz de estabelecer relacionamentos sólidos e duradouros. Será que deveria doar-se menos?

Mas que culpa ela tem? Foi criada assim. Sua natureza é essa. Bastou um toque, de leve, e o rabo fica pra trás. As baratas da equipe de revesamento 4x10 m disseram que o problema é que as pessoas sentem-se embaraçadas quando topam com um rabo sem dono. 

Durante semanas, Tíxia deixou de acreditar em qualquer existência superior. "Por que nasci uma lagartixa de rabo solto?" O que ela não suspeitava era que todas as lagartixas nascem assim.

Tíxia só iniciou o tortuoso processo rumo à auto-consciência quando ouviu dois pernilongos cantores planejando a dominação do mundo. Naquele instante, seu coração encheu-se de força, sua vida tornou-se cheia de propósito, e Tíxia começou a entender o seu papel no universo! 

Após evitar a concretização dos planos maquiavélicos da dupla sertaneja de sugadores de sangue, Tíxia, lembrando-se de algo que havia escutado andando pela rua, decidiu sair em busca de um tal oráculo, conhecido pelo estranho nome de "Google". Foi aí que Tíxia entrou em meu apartamento, onde tranquilamente, já que não sou adepto da matança gratuita dos pequenos seres, encontrou suas respostas. Descobriu que seu problema de "rabo solto" nada mais é do que uma característica de sua espécie. 

No fim das contas, Tíxia é uma lagartixa, demasiada lagartixa.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

|::| Bom, bonito e barato

Ele era um cara valente. Bom de briga, sabe? Do tipo "vai encarar?" Aos três anos já havia destruído um exército de comandos em ação. Sua irmã, coitada, apenas dois anos mais velha, enterrara sua Barbie no cemitério da família, prevendo um fim violento para sua mais querida posse, após testemunhar o transplante de rins, sem anestesia, que ele insistia ser essencial para que Susi continuasse a viver. 
Dois anos depois, durante uma fase mais zen, ele juntou todos os seus cavaleiros do zodíaco para uma meditação coletiva, em busca de desenvolver o décimo sentido, que lhe permitiria enxergar através das paredes. Frustrou-se porque só conseguiu chegar à metade do quinto, que consiste na interessante habilidade de ver pelo buraco da fechadura. Triste, sim, porém nunca desanimado, após alguns anos perseguindo seu objetivo, ele ainda foi capaz de aprender a incrível habilidade de decifrar as legendas das fotos da Revista Caras. 

Sim, ele era bom. Ele era ele. Ele era mais que ele. Ele estourava bexigas com as grafites de sua lapiseira prateada. Ele pintava quadros surrealistas usando apenas uma mão. Descia o escorregador com os braços para cima e olhos fechados. Ele tinha espírito aventureiro. Radical. Vivia perigosamente. Tocava a campainha dos vizinhos e ainda contava até cinco antes de correr. No esconde-esconde, só brincava de óculos escuros e fones de ouvido. No pega-pega, só abria o olho esquerdo.

O que ele não imaginava é que aos treze anos enfrentaria o pior de todos os pesadelos juvenis: a sétima série. Nunca mais seria o mesmo. Pra piorar, sua irmã, agora com quinze anos, menstruava, beijava garotos na frente dele e dançava lambada com a vassoura. Sua valentia minguava, pouco a pouco. Mesmo com doses cavalares de sustagem e biotônico, ele se via diminuindo, secando, degringolando.

Em fevereiro de 2012, quando viu no plantão da globo que o mundo já estava acabando, ele não sabia se sorria ou se chorava, se corria ou se deitava. Só um pensamento pulsava em sua cabeça: o mundo vai acabar de trás pra frente, ou de frente pra trás?

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

|::| Seis e meia na praça

            O sol ainda está no céu. Vai descendo aos poucos. A luz passa pelas nuvens e atravessa os espaços vazios do mundo. As janelas abertas. As sombras das árvores. Umas poucas pessoas que andam pela rua. Uns poucos pássaros que voam. Os sentimentos se confundindo. É nesse momento, em que a noite chega devagar, que sentimos o dia. Mais um. Pra muitos, algumas horas. Para alguns, uns últimos instantes. Ainda pra outros, os momentos. Pra mim, chegou a hora de parar. Pensar que fiz o que queria é um verdadeiro engano.

            O sol, cada vez mais escondido. Fugindo.

            A praça já está vazia. Só eu. Sentado num banco. Perto de uma árvore. Observando. Vendo o mundo passar. É o momento em que penso como seria estar sozinho no mundo. Talvez esteja. Pensar que olhando dentro dos olhos da pessoa mais próxima de mim pode ser revelação de que estou infinitamente distante dela. E isso é belo e aterrorizador. É até uma sensação de que estou num abismo, ou que os olhos do companheiro ao lado são o abismo e que podem devorar o que penso ser eu. Buraco sem fundo. Buraco absurdamente sem fundo.

            Mas a praça, esta praça às seis e meia da tarde, parece ir se desintegrando aos poucos. Perde partes de si. Já não correm as pequenas criaturas. Já não correm as criaturas pequenas, os seres, os humanos. Só eu. Só o cara da praça às seis e meia da tarde. Sentado num banco. Observando e tentando entender como as sombras podem dar lugar à escuridão conforme o sol se despede. Despede-se de quem? De um monte de matéria talvez. Matéria ou espíritos? É algo pra se pensar enquanto olhamos pela janela do ônibus que nos leva à nossa casa.

            O banco. Este banco sobre o qual estou. Estou sentado. Com as pernas cruzadas, balançando o pé direito e vendo o tempo passar. E eu sei que ele passa, pois o dia vai escurecendo aos poucos, agonizando. O céu está vermelho: símbolo de seu sofrimento. O banco está quase vazio. Talvez se alguém passasse neste instante por aqui eu o convidaria para sentar-se ao meu lado.

            Mas o banco. O banco já está quase vazio. Quem sabe se passados dois minutos ainda estarei aqui? Se nem eu – eu que penso sentado no banco às seis e trinta e um da tarde numa praça no meio de uma cidadezinha com um céu sofrendo e um sol se despedindo em agonia – sei se estarei aqui durante os próximos dois minutos.

            O chão. Esse chão que serve de túmulo para tantas folhas que caem das árvores. Esse chão é pra onde olho quando caminho pensando no que deixo pra trás cada vez que permito que uma perna se dirija ao futuro. Se bem que esse negócio do tempo é tão esquisito... Há um minuto eu estava a pensar sobre os vazios por onde os últimos raios solares passavam. Agora também penso nisso. Mas nem por isso agora é seis e meia da tarde. Quase nada mudou neste último minuto, a não ser a minha cabeça. Os meus pensamentos. Não mudaram, cresceram. Há um minuto eu ainda não havia chegado à conclusão de que as pessoas estão separadas por distâncias absurdas, por pensamentos inúmeros e desejos irrealizáveis. E se penso isso agora, devo ao último minuto em que decidi permanecer sentado num banco de praça vendo o tempo passar, observando, refletindo sobre o céu, o sol, a praça, o banco, o chão, e também sobre mim, sobre o mundo, sobre a matéria e talvez, se me foi permitido, sobre o espírito.

            Eu sentado num banco de praça vendo o tempo passando, as folhas caindo, o céu sofrendo, o sol agonizando, sentindo o tempo passando com os pensamentos crescendo. Eu sentado num banco de praça às seis e trinta e um e quase dois. Eu que resolvi parar. Eu que decidi que essa era hora de parar, sentar-me num banco e ver que posso não saber sobre dois minutos de minha vida.

            E quando os ponteiros resolvem tomar mais um minuto meu, mesmo com a possibilidade de descobrir mais sobre o abismo que há entre as pessoas, levanto-me. Caminho em direção ao ponto de ônibus.

            Seis e trinta e dois, esperando um ônibus passar e me levar. Levar pra casa enquanto penso se o sol sabe sobre sua própria agonia despedindo-se das coisas.

 

(Talvez meu relógio esteja parado. E se me iludi pensando que se passaram dois minutos quando na verdade podem ter-se passado cinco minutos? Espero que o ônibus não demore).


Escrito em 30/09/2001

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

|::| Pererecando

Não é de hoje que dizem que o mundo vai acabar em 2012, né? Isso não é uma grande novidade. Alguns anos atrás, eu já havia entrado em contato com textos, artigos e outros escritos sobre as supostas mudanças pelas quais o nosso mundinho passará daqui a alguns anos. Mas e o Quico? Não me digam que se vocês soubessem que o mundo vai acabar daqui a 3 anos vocês estariam vivendo de forma diferente, hein? Ué, se vocês pensam que há coisas que deveriam fazer antes de morrer, então porque já não estão fazendo?! Já que, não que eu queira assustá-los... mas, vocês sabem que podem desencarnar, desemcapar, desencadernar, passar dessa pra uma melhor (ou pior), ir pro andar de cima (ou de baixo), virar poeira estelar, tornar ao pó, falecer, enfim, morrer, a qualquer momento, não é? Espero que já estejamos todos procurando viver de acordo com as nossas crenças a respeito do que é ter uma existência significativa. 

Que bonito isso... estou sentindo que este post está meio auto-ajuda. Fico tão feliz quando isso acontece...

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Mudando de assunto. Obrigado aos amigos que têm acompanhado este blog. Um obrigado especial aos que além da visita, ainda me deixam seus comentários, que são essenciais para que eu queira continuar com esta brincadeira. 

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Como já perceberam, hoje estou meio sem assunto. Mas, mesmo assim, quis passar pra mostrar que estou vivo e operante. Bastante vivo, e muito operante também, hehe. (Desculpem... isso foi uma piada "interna"). 

Amanhã talvez eu coloque mais um textinho. Espero que gostem.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

|::| Algo que não fiz

[Como os mais próximos sabem, eu não vivo só de reflexões obscuras e complicadas... De vez em quando também escrevo sobre aqueles aspectos mais comuns da nossa vida. Ué. Paixões frustradas, dores de cotovelo, amores bem-sucedidos, sapatos novos, restaurantes legais, bons filmes e livros,  enfim... por incrível que pareça, não vivo de pensar sobre o sentido último das coisas. Eu também como, bebo, beijo, e assim por diante. Não preciso dar os detalhes, não é? Pra provar que sou normal, hehe, eventualmente vou postar alguns dos meus contos e crônicas... escritos nesses últimos 10 anos. Alguns talvez até sejam divertidos.... Enjoy!]

[Pra começar... um texto de 2001... sobre aqueles momentos de passividade que nos angustiam]

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E difícil é quando me pergunto qual o objetivo de minhas indagações... Pois já nem sei se aquilo que penso é realmente o que penso. E já nem sei até onde vai o meu pensamento e o pensamento alheio. E não consigo distinguir a minha pessoa do resto da multidão. Se eu ou eles. As frases nas quais penso são de outros; as que tento inventar, não invento, pois já foram inventadas... Os livros estão todos escritos. Os contos já escaparam e vagueiam entre os mundinhos de cada um. Os romances... esgotaram-se. E sinto que tudo já foi feito. Tudo já foi vivido. Mas eu não fiz nada! Outros fizeram! E contaram. Espalharam. E tudo pode ser lido. E pode ser dito. E vivido...?

            Pois então contarei o que não vivi.

            Eu não conheci a pessoa que eu quis. Somente a olhei, de longe. Algumas vezes olhei de perto. Mas não sei se ela me viu. Não perguntei. E nem quis faze-lo. Pois o que eu não faria se descobrisse que ela não é a pessoa que eu quis? E se eu percebesse que ela não podia mais ser um sonho?

            Sonho é o que era. Pois não a conhecia. Só a via num momento do dia. Todos os dias. Mas aqui dentro eu a via, sentia. O gosto, o cheiro, o som, a consistência. Mas não a conhecia. Pois não sabia se podia.

            Certa vez enquanto almoçava ela passou ao lado da mesa à qual eu estava sentado. Obviamente eu não olhei pra ela. Nem sorri. E também não descobri se ela desviou o olhar para a minha direção. Nunca vou saber, pois não vou perguntar... E a partir daquele momento eu não podia mais conter a ansiedade de vê-la passar ao meu lado. Perguntava-me: será que ela já não percebeu que eu a quero?

            Procurava andar pelos mesmos lugares. Seguia seus passos. Mas não quando ela estava por perto. Seguia o trajeto que eu imaginava que ela teria feito. Toda vez que tinha a oportunidade eu inspirava profundamente tentando sentir o seu cheiro. Mas não sentia. Eu não me aproximava o suficiente. Mas lá dentro eu sabia como era. Era... não sei!

            Não vou descrevê-la. Isso os românticos já fizeram. Está tudo lá nos livros. É só ler. Todos já sabem como ela é. Sabem até de suas emoções, e sentimentos. Mas eu só imagino como são, pois não tentei descobrir. Nunca perguntei.

            E o tempo foi indo. A vida foi indo. Eu não. Eu permaneci. Não a conheci. Não falava com ela. Não passeava com ela. Não a beijava, nem a sentia. Mas sabia a cor dos seus olhos. Não eram castanhos. Não eram negros, nem verdes. Seu cabelo não era ruivo, nem loiro. As roupas que vestia não eram feias, nem velhas, nem sujas.

            Bem, já percebi que isso tudo que eu não fiz não interessa a ninguém. Pois todos já sabem... Já viveram. Leram. Sonharam. Só eu que não. Pois me recusei a isso. O que adianta viver aquilo que não se vive? Não quis me enganar. Isso eu não fiz.

            A conclusão do romance que não vivi é a seguinte: não conheci, não toquei, não senti, nem vivi. Não me decepcionei, não chorei, só sonhei. E hoje não tenho que me fazer a pergunta: “Foi tudo real?” A resposta eu já sei; é "não". Não foi real, pois não foi. Não foi nada. Foi talvez uma brisa. Ou talvez um abrir e fechar de olhos. Ou ainda o arrepio frio de uma tarde ventosa de outono. Mas de uma coisa eu sei: Não foi um romance!

 

Kelson Fernandes

Escrito em 23/08/2001

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

|::| Abrindo o livro de receitas

Sim, tenho brincado de ler Nietzsche. Às vezes é preciso, ué. 

Talvez o normal seja buscar respostas aos conflitos que vivemos, mas, ao invés disso, tenho buscado o material necessário para que eu torne inteligíveis as questões que me atormentam e estimulam tanto. Mesmo porque não quero me satisfazer com respostas postiças. Assim como não me contento em viver uma vida postiça, uma vida que não é a minha. Obviamente, sou uma montagem individualizada a partir de muitos elementos já existentes. A novidade não está nas partes, mas no todo único e original que é a vida de quem escolhe pagar o preço de uma existência sincera. Há anos venho pagando esse preço. Às vezes em suaves prestações, às vezes não. Talvez seja aquele processo ao qual o fundador da psicologia analítica aplicou o termo "individuação". Não sei se é padecer no paraíso, ou rejubilar-se no inferno.

Gosto muito do uso que a antropologia faz do conceito de "bricolagem" para descrever a formação das culturas. Acredito que nós também somos frutos de usos e reúsos, de interpretações e reinterpretações, de montagens complexas e articulações multivariadas. Talvez por isso eu continue escolhendo enxergar  novas cores nessa tão multicolorida forma de vida, que é o ser humano. Mais que isso. Não se trata apenas de nossa espécie, mas de tudo: do ar, do mar, do amar, enfim, do universo. 

Mas o alargamento de nossa percepção, o processo de abertura de nossa visão e da sensibilização de nossos olhos à riquíssima gama de cores que a vida possui, é inevitavelmente acompanhado de uma certa dor, embora seja engraçado constatar que a dor não é inevitavelmente dolorosa. O desconforto natural que o crescimento produz sempre pode ser reinterpretado.

Gosto de ser preenchido com as várias respostas e perguntas que encontro enquanto me movimento pelo mundo para depois chacoalhar a minha mente, curtir a confusão, quebrar-me em minúsculos pedaços, juntar tudo novamente e descobrir novas possibilidades de vida. A cada vez que me remonto, descubro-me mais e maior.

Por que não provar essa deliciosa salada de frutas?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

|::| Tornar-se o que se é

Aquela busca inquietante por sentido, provavelmente iniciada logo após a primeira satisfação das necessidades humanas mais urgentes, volta e meia retorna e me pega de jeito. Após milhares de anos, a pergunta do Sábio ainda surge semi-oculta entre as confusões de pensamentos, emoções, sentimentos e desejos que me preenchem. "Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?".

A feliz e triste percepção da passagem do tempo é a semente para a procura por sentido. Aos que se permitem percorrer essa desesperadora e incrível jornada, reserva-se a dádiva e a maldição de se tornar o que se é.

E vacilo entre o êxtase da sincera auto-realização daquilo que sou, e o amargo sabor das mentiras e das reinterpretações às quais me submeto. Torcendo sempre para que aquilo que sou seja algo mais bonito do que a constatação de que absolutamente não sei o que sou. Exceto, que sou "humano, demasiado humano".

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Como viram, finalmente realizei o sonho de tornar possível, a quem desejar, inscrever-se e ser avisado quando houver novos posts. Basta inserir o e-mail nesse campo ali do lado direito da tela.

Ouvi dizer que de 2012 não passa, então, aproveitemos o tempo. Escrever e saber que pelo menos alguém encontra alguma satisfação nisto tudo me fazem uma pessoa bem mais feliz.

Respondendo ao "anônimo" do post anterior: Sim, realmente o plano é escrever textos mais curtos para o blog. E são curtos..., uma hora eu mostro o que é um texto longo. Ué.

Aos que se debatem na busca pela "total compreensão de tudo", como eu: tenham calma! Talvez nem tudo precise ser decifrado, entendido, explicado e julgado. Há coisas que apenas são pra serem sentidas e vividas.


sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

|::| Olá, 2009!

Frequentemente somos ambíguos. Agindo com ou sem objetivos definidos, sempre há uma parcela de nossos atos que escapam ao nosso total controle consciente. Embora o planejamento, a objetividade e a consciência contribuam para que obtenhamos resultados esperados, sempre há variáveis que nos escapam. Eu, muitas vezes, não sei  bem quais serão os frutos de alguns atos. Penso que isso é natural. Afinal, eu, assim como, acredito, todos os seres humanos, não enxergo o futuro. Por isso, escolhi moldar meu comportamento de forma a atender certas exigências das minhas crenças a respeito da natureza e (des)propósito das coisas.

No fim das contas, sempre agimos de acordo com articulações complexas entre as informações que obtivemos, as nossas emoções e os nossos pensamentos. Alguns dizem que para entendermos o nosso comportamento, devemos buscar suas origens nas informações com as quais entramos em contato desde o nosso nascimento. Essas informações gerariam emoções, pensamentos, atitudes, e por fim os resultados que colhemos. Mas, talvez haja um porém na aparente perfeição dessa linha de explicação: nossa mente não funciona como a esteira automatizada de uma linha de produção linear. Não sei se é possível haver a assimilação de qualquer informação sem que esta, desde sua entrada em nossa mente, já se ligue a emoções, sentimentos e pensamentos. 

Em outras palavras, uma vez que a engrenagem de nossa vida mental é iniciada, torna-se muito difícil saber onde começa e onde termina o processo que dá origem às nossas ações. Entretanto, há uma palavra curiosa em nosso vocabulário que bagunça ainda mais essa brincadeira: escolha. Acreditamos que possuímos o dom da escolha. Escolhemos o que comer, com quem nos casar ou não nos casar, o que ler e por onde andar. 

O problema é que acreditamos que podemos escolher porque escolhemos acreditar que podemos. Consequentemente, todas as nossas escolhas resultam de escolhas fundamentais que constroem as nossas crenças. Você pode escolher comer arroz com feijão, ou só arroz ou só feijão, não é? Mas pode escolher comer ou não comer? Até quando pode escolher não comer? E quando não puder mais não escolher comer, poderá ainda assim escolher entre o arroz e o feijão? E se houver só arroz, que escolha estará disponível?

Quando escolhemos refletir sinceramente sobre tudo isso, começamos a desenvolver uma sensibilidade maior em relação à vida humana. Passamos a ver que as nossas escolhas muitas vezes são tão limitadas pelas possibilidades que enxergamos ou até mesmo pelo tempo, que poderíamos até dizer que não temos escolha. Apesar disso tudo, eu escolhi acreditar que sim, realmente possuímos o dom da escolha, sem esquecer que há escolhas que absolutamente não estão ao nosso alcance.

Quanta crueldade existe porque as pessoas tomam decisões equivocadas que as afastam cada vez mais da capacidade de se enxergar nos outros. A empatia, talvez o maior de nossos dons, torna-se cada vez mais obscurecida conforme escolhemos não enxergar que no fundo do profundo de todos nós, somos menos livres do que pensamos ser, e mais livres do que gostaríamos de ser.

Enquanto todos estão falando da chegada do novo ano, por que não levarmos um papo sobre as nossas escolhas?