domingo, 2 de janeiro de 2011

|::| Das mudanças

Ano recém iniciado. Tantas resoluções e decisões para o novo ano, certo? A virada é como que um marco, um ritual esperado, através do qual você acredita que sua mentalidade será tão radicalmente transformada ao ponto de gerar em você um novo comportamento no momento em que os ponteiros transitarem das 23:59 para as 00:00 do dia primeiro, como uma espécie de mágica.

Essa história, que se repete anualmente, é bastante irônica, talvez por ser triste e engraçada ao mesmo tempo. Triste porque as resoluções feitas se provam completamente impraticáveis logo que o ano se inicia. E engraçada porque um ano depois você volta a acreditar. Volta a acreditar que mudanças acontecem num passe de mágica. Volta a acreditar que é mais forte e resoluto do que você realmente é. Volta a acreditar que é possível acreditar...

Todos têm seus sonhos e esperanças para o novo ano. Tenho os meus também. Alguns eu manterei só para mim, outros dizem respeito a este blog.. Quero conseguir postar mais. Mesmo já tendo me prometido isso muitas vezes, considerando que desde o ano de 2000 mantenho um site pessoal na internet com o objetivo de compartilhar meus textos, continuo acreditando. De qualquer forma, algumas mudanças já aconteceram. E tenho algumas novidades:

A primeira delas, é que estou migrando o blog para um novo endereço: http://semeusouvidosfalassem.blogspot.com Como verão, além de um novo endereço, o blog também está com uma cara nova. Não muito nova, eu confesso, mas sofreu algumas plásticas e recebeu alguma maquiagem... Acho que ele andava meio pálido nos últimos tempos.

A segunda novidade é que agora o blog tem uma página no Facebook (por favor, curtam!!!). O objetivo é criar uma certa dinâmica entre as pessoas que têm acompanhado o blog. Nem sempre (na verdade, quase nunca) consigo responder aos comentários que são feitos no blog. Espero que através da página no facebook eu consiga interagir mais.

A terceira novidade... e ela tem tudo a ver com a criação da página no Facebook, é que após alguns anos, tenho a suspeita de que estou voltando a querer opinar. Passei muito tempo quieto, falando só do meu "mundo interior", sem expor muito as minhas opiniões por estar bastante cético a respeito da utilidade delas. Por isso, a página no Facebook será muito interessante para debatermos algumas idéias.

Basicamente, por enquanto, é isso. Espero que curtam essa nova fase do blog!

=D


terça-feira, 28 de dezembro de 2010

|::| Dos desejos para o próximo ano

Madruguei novamente. É como se o fim do ciclo ao qual demos o nome de "ano" me forçasse a pensar, a repensar e a me preparar para as novas escolhas que se abrem diante das possibilidades a que me expus ao longo deste ano.

Há momentos em que eu queria enxergar mais e saber para onde estou indo. Mas há vezes em que eu simplesmente gostaria de sentir a paz da crença de que absolutamente não é possível fugir do processo de se tornar o que se é. Mais cedo ou mais tarde, aqueles objetivos que se constroem a partir de nossas escolhas, e que chamamos de "missão", pedirão o nosso tempo e a nossa atenção.

Não sei se consigo viver fugindo de todas as responsabilidades que são criadas à medida que cresço em consciência. E, ansioso, confesso que isso me gera certo sofrimento. Saber que, inevitavelmente, colocar-me-ei diante dos desafios mais adequados à construção de mim mesmo gera, não raramente, um sofrimento que também é acompanhado por uma satisfação indescritível, devo confessar.

A dor e a alegria são amplificadas na mesma intensidade em que minha percepção do mundo cresce. Parece uma piada perceber que a percepção aumentada é, na verdade, uma tomada de consciência do tamanho de nossa ignorância. O que sentia, no início, como sendo percorrer um corredor estreito e escuro, mostra-se, com o tempo, ser vagar como que aleatoriamente num espaço sem limites, coberto de sombras. Talvez eu possa dizer que o tempo me faz mais consciente do tamanho do desconhecido. Sim, sinto que posso descrever assim.

Viver, que na infância parecia como que andar sob uma linha fina e sólida que seguiria o fluxo simples de nascer, crescer e morrer vai ganhando complexidade. Adicionam-se etapas, estendem-se momentos, retarda-se conquistas, adiantam-se acontecimentos. E a vida vai tornando-se muito, muito mais. Surgem questões sobre o como viver. Sobre o que fazer. Sobre o por que fazer. Sobre o quando. E parece sobrar pouco tempo para aquela falsa sensação da linearidade da vida.

Agora sinto-me caminhando sem direção sobre uma faixa de possibilidades grande o suficiente para me confundir, para me enganar e para fazer eu me encontrar. Perder-se em si mesmo é o mesmo que se encontrar?

Estamos tão aquém daquilo que prometemos a nós mesmos enquanto sociedade, enquanto grupos, enquanto indivíduos. Somos hipócritas, pouco conscientes, pouco confiantes, muito pouco confiáveis e bastante desconfiados. Ainda encontramos a opressão de mulheres, a discriminação de negros e a crueldade com homossexuais. Ainda usamos a religião para dominar as mentes, a política para explorar os povos e a hierarquia para massagear nossos egos. Ah, sim, como estamos aquém daquilo que poderíamos estar...

Contudo, certamente as pequenas revoluções - essas que acontecem na nossa mente, nos nossos pequenos grupos - continuarão colocando aqueles que se permitem o crescimento em caminhos repletos de possibilidades bem mais atraentes. A esperança de um mundo novo nunca morre e se renova diariamente através da nossa capacidade de nos reconhecermos, mesmo que por poucos instantes, nos outros, percebendo assim que não há mal ou bem que recai apenas sobre aqueles que nos cercam e que cada ganho ou perda individual é sempre também um ganho ou perda para a coletividade.

E o ano novo mostra-se sempre um ritual que oferece novas potencialidades, reforçando a nossa vontade de recomeçar, de fazer melhor e de mudar. Trazendo de volta a esperança de que somos capazes de alcançar um patamar mais alto de satisfação pessoal e de realização coletiva.

Para mim, tenho definido que 2011 será um ano de fazer mais para a construção de ambientes mais justos. E faz parte dos meus desejos ver que mais pessoas permitir-se-ão abandonar velhas idéias, paradigmas equivocados e convicções que prometeram trazer vida em abundância, mas que distorcidas só trouxeram escravidão das mentes e opressão das gentes.

Feliz 2011!


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

|::| O menino dos ares

Após tantas viagens, tantas mudanças e desvios inesperados, ele percebe que dentre todas as ajudas que pode receber, a principal, aquela com que continuará contando sempre é com sua vontade de realizar os sonhos que começaram enquanto ele ainda estava lá em cima.

No chão, suas idéias se organizaram, seus objetivos ficaram mais claros, assim como seus sentimentos, e agora parte para uma nova fase. Sabe que não sonha sozinho e que alguns vínculos começados há algum tempo são fortes o suficiente para se manterem firmes no meio de toda a bagunça que as mudanças geram.

Não muito tempo atrás, pensando sobre o desconforto que é viver num mundo fake, ele se deu conta de que estamos constantemente procurando não desapontar as muitas expectativas alheias. Ele viu isso como uma grande teia de mentiras, que ameaçava gerar tamanha confusão que deixaria todos a ponto de se perder de si mesmos. Talvez isso ainda não era claro, mas cada vez que ele se colocava aqueles questionamentos, estava se aproximando pouco a pouco do lugar onde está agora.

Se agora ele pode sentir que está fazendo algo importante pelo seu futuro, é porque lá atrás ele passou a se questionar. Ele quis encontrar um caminho que fosse diferente do que via como natural para si e está começando a encontrar um. Com o passar do tempo, perceberá que existem muitos caminhos e que estará sempre naquele que escolher estar. E saberá com clareza que as vontades, os desejos, os sonhos e os projetos sempre se manifestam através de escolhas.

Menino, você que é o mesmo, mesmo quando é assim tão diferente, percebe que sempre foi, mesmo se sem saber, o menino dos ares? Percebe que nunca precisou do avião, pois sempre pôde voar por si mesmo, com essas suas asas que ainda está começando a descobrir? Agora que tudo isso se torna mais claro, para quão longe quererá voar? Preferirá voar sozinho ou aceita companhia? Voará suficientemente alto para a Terra parecer muito pequena e distante? Ou voará baixo o bastante para enxergar o que o espera aqui embaixo?

De qualquer forma, verá que nunca será capaz de voar longe o suficiente para que se perca de si mesmo, pois sua essência, o princípio de si mesmo, é forte o bastante para puxá-lo de volta sempre que estiver longe demais. Puxá-lo de volta à sua felicidade.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

|::| O caminho dos cães

De tanto bater, a porta finalmente se abriu. Seu desespero transformara-se em muitas gotas de um suor frio que escorria por suas costas, por sua face e por suas pernas. Gritara tanto e, mesmo assim, nunca se sentira num silêncio tão desolador. Invadido pelo medo, pela desconfiança. Arruinado pela descrença.

Anos atrás, ainda criança, quis entender o caminho dos cães abandonados. Perguntou muitas vezes a si mesmo e a tantos outros para onde vão os cachorros que andam sem rumo aparente pelas ruas do mundo. Nunca obteve respostas significativas ou minimamente coerentes. E questionava-se se as entenderia, caso as recebesse.

Foi encontrado dormindo no chão, debaixo de uma ponte. Com apenas 11 anos, inventou de seguir aquele viralata magrelo e bastante fedido que encontrara em frente à escola. Não descobriu para onde o cão se dirigia, mas aprendeu que depois de algumas horas caminhando juntos, qualquer cão se torna seu melhor amigo. Após muito insistir, seus pais, ainda chorosos e radiantes após 3 dias de uma busca incansável pelo frágil e doente filho desaparecido, acabaram por aceitar levar o cachorro para casa. Ele ficou feliz, mas chorou escondido, frustrado por não ter feito a descoberta de sua vida.

O suor agora o faz tremer de frio, enquanto observa, paralisado, a porta se abrir. Milhões de perguntas - quem sabe, bilhões - passam por sua mente. Lembra-se de cada resposta vazia que recebera ao longo da vida. Lembra-se de cada vez em que se jogou na cama, afundando o rosto no travesseiro, abafando aquele choro quase injustificável.

Não dá para saber tão pouco e se manter tranquilo. Não para ele. E nessa busca, andou pelo mundo. Conheceu muita gente das gentes de todos os povos. Vez ou outra mandava um cartão postal aos seus pais, avisando que embora tendo parado com aqueles medicamentos, e contrariando os dizeres e alertas de extremo negativismo de seu médico, sentia-se bem.

Encontrou o que presumira ser o amor. Descobriu o que imaginara ser a paixão. Maltratou o que pensara ser seu corpo. Enfeitou o que julgara ser sua mente. E sempre, mais uma vez, via que, nem de longe, era capaz de entender o caminho dos cães.

Agora, inexplicavelmente, sente que está para descobrir o que sempre quis saber. A porta continua se abrindo, revelando uma luz fraca e um aroma conhecido. Por alguns instantes, ele sente-se como se seu mundo estivesse entrando em colapso com o sol. Sente-se fervendo por dentro. Sente-se cegado pela luz da descoberta. Percebe que sua busca termina exatamente no seu local de partida. E que, enfim, está de volta ao lugar de onde nunca nem percebera ter saído. O lugar para onde os cães vão, o sentido de seu caminho é, no fim das contas, simplesmente, o fim de seu caminho. Não há sentido, não há motivos. Só há o início e o fim. E ambos se encontram no silêncio.

sábado, 2 de outubro de 2010

|::| O Menino do chão

Aqueles tantos questionamentos engolidos e abafados por tempos, vez ou outra libertam-se e produzem momentos valiosos. Sua vida, que segue sempre, indecifrável, por caminhos que inevitavelmente o levarão à sua redescoberta, conduz à realização máxima daquilo tudo o que já percebe que quer, e das outras coisas que ainda nem começou a querer. Seu último pouso, que marcou a concretização do fim de um processo iniciado sabe-se lá quando, também significou o início de uma nova viagem. Desta vez, com os pés no chão.

O mundo lá de cima, aquele dos ares, retira-se, aos poucos, dando lugar ao mundo de baixo, das escolhas possíveis e das possibilidades ao alcance dos sonhos. Ao tocar o chão, sente que é o momento de pesar os planos e de avaliar as intenções. Não há mais a liberdade dos ares. Não há mais a liberdade dos tantos lugares e da vida sempre em trânsito. Mas agora há liberdade para iniciar a construção de si mesmo. A liberdade para a definição de seus desejos.

Esse menino, que é o mesmo ao mesmo tempo em que é tão novo e diferente, acordou no chão, na Terra, e agora poderá unir à visão privilegiada que teve lá de cima, a experiência concreta de tocar, por tempo indeterminado, com os pés, o chão.

Será que quando der seus primeiros passos por aqui ele ainda será capaz de manter aquelas confusões que o fizeram ser assim tão diferente? Será que após desembaralhar-se e aterrisar no lugar onde começará a construir uma nova parcela de si mesmo, ele verá que o alto e o baixo, o céu e a terra, o lá e o aqui são sempre o mesmo lugar de sempre? Que, afinal, ele nunca estará longe de si: o único lugar onde pode estar.

domingo, 15 de agosto de 2010

|::| O menino do avião

Embora sempre ele mesmo, estando cada dia em um lugar diferente e cada dia em vários lugares, surge uma sensação de embaralhamento e de confusão. Sensação que às vezes ele percebe, às vezes não, como aquele formigamento nas pernas que só é percebido quando se levanta. Talvez por isso uma certa ansiedade: ele se levantou, e começou um processo de ampliação da sua própria percepção. Depois de iniciado esse processo, é, muito possivelmente, tarde para voltar atrás.

Com os pés frequentemente fora do chão, sem tocar a Terra, sempre entre os lugares, sempre em trânsito, indo ou voltando, nunca ficando, torna-se complicado sentir as regras do jogo. Fica difícil entender de que jogo, dentre os tantos que se jogam no mundo, ele participa. Essa sensação de não pertencimento, de se estar alheio aos fatos, alheio ao que acontece, faz com que ele se irrite, com freqüência. Por incrível que pareça, ele sente, talvez sem perceber, que também precisa encontrar as suas leis, o seu rumo, o seu norte.

Mas como dizer para ele que esse seu mundo acima da Terra é também o que o torna assim tão diferente? E como dizer que nas alturas, onde seus pés não tocam o chão, sua mente se encontra livre para inventar tantas possibilidades e crescer em direções tão novas?

Talvez um de nossos maiores dilemas seja conciliar a grande inovação e criatividade que brotam da ausência das regras com o seu potencial para a destruição. Como transitar entre os mundos, entre as terras, entre as cidades, e continuar mantendo em integração, numa só mente, os seus sentimentos, as suas emoções e os seus sonhos? Ele percebe que em algum momento pousará, e sente que só então poderá colocar em movimento os tantos planos que nutriu enquanto estava entre as nuvens.

Esse menino do avião, que voa entre os mundos, transitando entre os costumes e entre os muros, pousa sempre pouco conformado por perceber que, afinal, estar livre, cada dia em um lugar diferente, como se a cada dia iniciasse uma nova vida, é, afinal, uma perigosa prisão.

Será que quando ele voltar a ligar seus pés ao chão da Terra será capaz de organizar suas tantas idéias alimentadas lá no alto, pouco mais perto das estrelas? Após tanto embaralhar-se, tanto procurar-se e tanto perder-se, ele ainda pode ver que a direção que procura, o seu norte, é, no fim das contas, ele mesmo?

sábado, 10 de julho de 2010

|::| Dos giros da alma

Sou aquele um ali, parado, no canto. Com uma visão privilegiada, embora um tanto isolado. Posso observar enquanto você ri discretamente, caminha à procura de algo que nem sabe o que é e retorna ao mesmo lugar, fingindo ter encontrado algo que lhe deu mais sentido. Eu me divirto.

Vejo todos em suas conversas pouco significativas. Todos se testando através das palavras, procurando os pedaços em comum que mais tarde servirão para a construção de uma colcha de retalhos maltrapilha - e nem por isso menos interessante - que servirá para cobrir as vergonhas, as intrigas, as brigas, as muitas faltas cometidas às incomunicáveis expectativas. A ironia é que as mesmas expectativas que estão presentes nos fins, estão também presentes no início. E são elas, afinal, que sempre estão gerando o movimento, a busca, o entendimento, o desentendimento, as ilusões e também as realizações. Através delas sempre espero encontrar aquilo que quero e que, na quase totalidade das vezes, permanece oculto à minha pequena, frágil e pouco poderosa consciência. As mesmas expectativas que me fazem partir, buscando descobrir novas e inesperadas possibilidades de vida, também me fazem voltar, ao ponto inicial, às mesmas questões e crises bobas e pouco práticas que tornam um pouco cheios de ruídos os meus pensamentos. Eu me ironizo.

Do canto, vejo muito e sou pouco percebido. Dali eu posso fazer escolhas e planejar os próximos passos sem que me sinta sufocado pelas outras existências que circulam pelos meios. Gosto da sensação de ter toda essa visão, mas às vezes eu me questiono quanto às escolhas que faço e desconfio de mim mesmo. Desconfio dos meus interesses e propósitos. A mesma distância que me mantém no canto e que me dá visão tão privilegiada também me mantém à parte, separado do meio, de todos. Desconfio, afinal, que é um preço alto demais. Entretanto, não consigo agir diferente. Eu me decepciono.

As decepções me levam a uma lucidez um pouco incômoda e um tanto prazerosa. A destruição que produzem em mim geram sempre, no fim das contas, um momento de completa liberdade. Sou livre para reorganizar todas as minhas pequenas peças, os meus pedaços e cacos. Nessa reconstrução posso ser novo, de novo, e sentir e pensar diferente, agir melhor, ser mais lúcido, enxergar mais e aproveitar com mais intensidade as novas possibilidades. Enquanto o fim é marcado por tanta falta de esperança, tanto pessimismo, os começos são sempre uma prova inquestionável de que nossas emoções são, afinal, fortemente renováveis, flexíveis e dobráveis. O segredo que tornaria a minha vida muito mais tranquila - possivelmente sem graça - é descobrir como manter essa visão tão clara de que tudo se renova. Eu me refaço.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

|::| A delicada beleza do descartável

Ele vai ao supermercado. Discretamente procurando algo. Anda um pouco sem rumo, cuidando para não esbarrar e derrubar alguma coisa, talvez uma garrafa cara de whisky.

É bem sutil em sua busca. Escolhe bem e pega o que quer com cuidado, como se tudo - embalagens, frascos, garrafas e pacotes - fosse feito de algum cristal excessivamente fino e caro. Respira com calma, como se houvesse pouco ar; como se quisesse economizar seu fôlego, precioso, afinal.

São fileiras e fileiras de produtos. Cores e letras e conteúdos. Sempre com seus preços. Tudo com o seu preço. E cada preço com seu dono, com seu portador. Ele apenas olha tudo isso, e age como se ainda fosse interessante ser blasé. A quem engana? Aos que o observam - os poucos - de longe? A si mesmo? Resposta impossível a uma pergunta tão impertinente. Não se engana a quem não foi conquistado pela crença.

Se houvesse mais tempo e se ele estivesse mais a par de todas as infinitas possibilidades e dinâmicas do ato de observar, talvez se indignasse com essa irritante inversão que coloca conteúdo e forma - aquilo que se é e aquilo que se apresenta - em completa submissão ao preço que carregam. Quase como se não mais houvesse preços para as coisas, e sim coisas para os preços.

A beleza e o valor desaparecem no ar, como fumaça, tão frágeis diante de tanta confusão e de tamanha oferta de possibilidades, tornando um pouco cômico imaginar que ele conseguiria percebê-las. A beleza e o valor - duas piadas velhas e ultrapassadas - insistem em se infiltrar das formas mais sutis entre as prateleiras e fileiras intermináveis sem que ele as note.

Quantas vezes ele passa por aquelas fileiras? Quantas vezes pára, pega algum produto, observa, analisa, lê o rótulo e o coloca delicadamente de volta a sua prateleira? Ele até poderia acreditar nos rótulos se conseguisse perceber alguma diferença entre os tantos que lê. São, afinal, todos iguais. Ele, e os tantos outros que caminham por aqueles corredores, são, afinal, tão iguais em sua indiferença polida. Por alguns instantes é bastante difícil distinguir os papéis que cada um desempenha nesse ambiente.

Sem entender bem o processo que faz com que de uma hora para outra ele sinta que pegou tudo de que precisava, caminha em direção a um caixa, sem deixar de pegar uma revista que traz em sua capa, de forma nada discreta, a afirmação de que em seu interior é possível aprender mil e três formas de meditar que trarão a completa paz de espírito.

Ele passa suas compras, paga, e sai, segurando algumas sacolas de plástico fino, com tudo aquilo que ele insiste em pegar todas as noites, talvez fingindo para si que no próximo dia não precisará voltar e pegar mais. Não querendo ver que ele nunca sai com o suficiente e que voltará no dia seguinte, buscando mais, porém bem menos do que precisa. Mantendo-se, inevitavelmente, nesse círculo sem fim de confirmar que o que foi feito para ser descartável é, enfim, realmente descartável.

domingo, 6 de junho de 2010

|::| Dos gelos e demais manifestações da água

Embora muito pouco frio em comparação com aqueles lugares do mundo onde o frio é realmente frio, aqui, para mim, está bem frio agora. Horas atrás, quando abri os olhos e vi que havia sol novamente e, dessa forma, constatando que estava acordando num novo dia, eu me dei conta de que estava mais frio do que quando me escondi sob edredons e cobertores um pouco fedendo a pó, enquanto ainda estava escuro e a dúvida corria solta nos comentários de que o sol não se ergueria novamente. Comentários sussurrados por aquelas vozes que só ouço quando fecho os olhos e junto o travesseiro à minha face, ou minha face ao travesseiro (não sei bem, e isso, convenhamos, é um pouco irrelevante, pois o resultado é, simplesmente, o mesmo).

Fiquei, talvez, aliviado. Alívio de conseguir, pela primeira vez, sentir que é possível, sim, recomeçar. E um sentimento de "talvez" porque, afinal, talvez não seja a primeira vez. Na verdade, eu nunca sei muito contar e nem conto muito com essa capacidade, desde que percebi que a possibilidade de contar os números alcança o infinito, ou seja, alcança nada. Eu gostaria, claro, de saber quantas vezes já acordei com aquela sensação, mas não sei, mesmo.

Por alguns instantes franzi a pele da testa, fiz pressão sobre meus olhos, procurando resgatar a memória das histórias que se desenrolaram em minha mente enquanto eu dormia. Consegui me lembrar de algumas cenas. Eu estava numa casa nova, com novos móveis, andando e tentando descobrir o que mais haveria de novo. Andei por alguns cômodos, e num lugar que parecia muito com uma cozinha, havia uma cachoeira de lava. Talvez por ser um sonho e nos sonhos eu não ter muita noção do perigo, caminhei em direção à cachoeira e, como se estivesse pra me molhar em alguma bica de água gelada num dia quente e com sol forte em ubatuba, entrei embaixo daquele líquido vermelho incandescente. A surpresa, que seria bizarra se não fosse um sonho, foi que a lava era gelada. Senti como que me banhando com gelo derretido.

Percebendo que minha mente não fofocaria muito além disso a respeito do meu mundo dos sonhos, decidi me levantar. Caminhei até a sala, liguei a TV. Sempre deixo a TV ligada quando estou sozinho. Fui à cozinha, beber a água num copo, e não pude evitar a irritação forte de ver tanta louça suja. Tentei me afastar da cozinha, mas como se a força da gravidade houvesse feito um acordo com a minha louça suja, fui atraído de volta. Abri a torneira e comecei.

Com as mãos sendo molhadas pela água fria que saía da torneira, senti algo que estava guardado há anos em algum lugar pouco acessado da minha memória: a liberdade. Esse vínculo emocional com a limpeza da louça, que criei anos atrás naquela época mais complicada, permaneceu e, agora, posso usá-lo, mais uma vez, a meu favor.

Está um pouco menos frio agora. Talvez se eu começasse esse texto novamente, conseguiria escrever algo mais divertido. Mas, a criatividade e o humor serão guardados para o próximo. Afinal, nada como lavar a sua própria louça suja num dia frio.




sábado, 10 de abril de 2010

|::| O fetiche do assalto

- Assalto? - perguntei, novamente, com um pouco de descrença.

- Sim, assalto - ele disse, demonstrando leve irritação, pois era, final, a terceira vez que eu perguntava a mesma coisa. Completou, já significativamente mais irritado, - cara, o que você tem? AS-SAL-TO, manja? Eu chego, peço seu dinheiro de forma deseducada, você fica apavorado meio sem saber como reagir, eu elevo o volume da minha voz, adicionando um tom mais dominador, você começa a suar nas mãos, pega sua carteira, me entrega tudo o que tem nela, e eu vou embora correndo como se de uma hora pra outra o seu medo tivesse passado para mim. Entendeu agora? Ou quer que eu repita?!
"É", pensei, "parece que isto é um assalto mesmo. Será que devo entregar a minha carteira agora? Ou finjo que esqueci uma panela com leite no fogão e saio correndo, desesperadamente gritando que o leite vai derramar? Ah, quem sabe eu possa fingir que também sou um assantante: 'Perdeu, playboy, hoje é seu dia de passar a carteira'. Não, não me parece uma boa idéia. Ele está começando a fazer movimentos estranhos com as pernas, como se tivesse síndrome das pernas inquietas. E se tiver? Bom, isso não muda nada o fato de que ele, aparentemente, está querendo a minha carteira".
- É pra hoje, tá? - disse o provável assaltante, enquanto balançava as pernas de uma forma quase divertida.
- Tá. Essa parte do "é pra hoje" eu entendi. O que quero entender é esse negócio de assalto. Você aparece do nada, faz essa cara de vilão de novela das seis, grita comigo, tenta me ensinar a soletrar "assalto" e ainda quer meus cartões e todo o dinheiro que tenho na minha carteira?
- Sim. Exatamente isso!
- Você é casado?
- Hã?!
- CA-SA-DO! Sabe? Você pega uma mulher, gasta todo o dinheiro dos seus pais, enfeita uma igreja, chama um cara esquisito de preto, pede pra ele fazer umas perguntas sem sentido pra vocês, e a tudo o que ele pergunta vocês simplesmente fazem cara de burros e respondem "sim". Sabe do que eu tô falando?
- Sim. Sei. E não, não sou casado. Vai passar a carteira ou não?
- Tenho essa opção? E aliás, minha esposa é muito melhor do que você nesse negócio de pedir a carteira. Você é realmente amador.
- Amador? Você perdeu a noção? Passa essa carteira, agora!
- Ou...?
- Ou?
- Sim, "ou" é uma conjunção alternativa. Qual sua formação?
- Ladrão, conhece? Passa logo a carteira!
- Ah, agora nem pedem mais "por favor". Na época dos meus pais os ladrões costumavam ter alguma educação. Você sabe que o Brasil tem sérios problemas na sua rede de ensino, certo? O que o seu sindicato pensa a respeito? Não oferecem cursos profissionalizantes?
- Hã?
- Cursos profissionalizantes. Você vai lá, fica 4 horas e sai sabendo consertar torneiras, tirar fotos ou, quem sabe, até carteiras dos transeuntes...
- Tá vendo isto? É uma faca! Eu não costumo arrancar sangue, mas você tá me obrigando.
- Todos temos escolhas...
- Sim, e a sua, neste momento, é entregar a carteira ou morrer!
- Você já ouviu falar de uma invenção chamada "revólver"?
"É, até que estou começando a acreditar nesse assalto", pensei. Levei a mão direita, já suada, talvez de nervoso, talvez de medo, ao bolso da calça, e descobri que eu estava sem a minha carteira! "Será que falo pra ele? Será que finjo uma diarréia e saio correndo? Será que puxo uma caneta e ameaço o cara de morte?".
- Desculpe, preciso ser sincero com você - eu disse, enfim. - Estou sem a minha carteira!
O assaltante, a essa altura bastante irritado, talvez desconfortável em sua posição social de assaltante, pareceu ainda pensar por alguns instantes antes de sair andando e resmungar: "nunca mais assalto um cara casado...".
Peguei meu celular, liguei para minha esposa e disse: "Querida, vou me atrasar. Esqueci a carteira no trabalho..."