|::| Táticas de guerra
Toda suada, Maria abre os olhos lentamente, quase com medo de se descobrir em outro lugar. O mundo vai ganhando forma aos poucos. Como se retornando de um transe, ela respira fundo e profundamente forte. Sente-se arrepiada, e puxa o lençol, cobrindo sua nudez; cobrindo-se dele. O pesadelo. Mais uma vez. O mesmo.
As noites de domingo para segunda-feira são sempre assim. Pelo menos desde que começou a lecionar naquela escola de educação infantil. Maria se vê nua, segurando um giz branco que escorrega enquanto ela tenta, em vão, escrever seu nome numa lousa gigante, talvez infinita. Ela percebe que está sendo encarada por milhares de alunos, de todos os tamanhos, crianças, adultos, jovens, idosos, altos, magros, gordos, baixos, loiros, morenos, pretos, pardos, vestindo roupas, uniformes, calças, saias, vestidos, bermudas, camisetas, vestindo nada. Sente-se observada pelo mundo todo, e pressionada a realizar talvez uma das mais simples tarefas do mundo: escrever seu próprio nome. Mas a lousa está escorregadia. Parece molhada. Maria tenta em vão usar o giz, que fica coberto por uma substância viscosa e vermelha. "É sangue!", é o grito que Maria solta logo antes de acordar.
Semanalmente Maria está lá no consultório do seu terapeuta, contando seu pesadelo, novamente, enquanto ele a olha com uma expressão que parece um misto de tédio e fome. "Nunca mais marco consulta para o meio-dia", é a única coisa que passa pela cabeça dele. "Como era seu relacionamento com seu pai?". "Doutor, já não falamos disso na semana passada?". "Sim, mas repita por favor. Olhe para estas figuras e tente lembrar-se de situações marcantes que viveu com ele". Maria não vê sentido nessa palhaçada, e só retorna porque a escola a obrigou, depois que ela passou a apresentar uma certa violência em sala de aula. Após uma prova oral da qual vários alunos saíram com sérios distúrbios de comportamento, Maria foi chamada à direção e ameaçada de ser demitida caso não procurasse ajuda profissional. Maria se defende dizendo que o problema está na péssima educação que os alunos recebem em casa, o que exige da parte do professor um comportamento mais rígido. Segundo ela a raiz do problema é a televisão. Estranho, já que ela própria é viciada em TV. Desenvolveu até uma habilidade paranormal: é capaz de pressentir o instante exato em que um programa retorna dos comerciais.
Maria não entende porque as pessoas a acham tão estranha, afinal, considera-se uma ótima professora. Está sempre a par de todas as novas táticas pedagógicas. Faz uso da tecnologia para tornar suas aulas mais interessantes. Tem orkut, blog, myspace, facebook, msn e multiply. Recentemente passou a exigir que seus alunos usem o Twitter, e que façam pelo menos 10 postagens por dia, inclusive nos fins de semana.
O que ninguém entende é que Maria desenvolveu técnicas elaboradíssimas de contenção da poluição sonora. E tudo tem um preço, claro. "Criançada, hoje vocês preferem brincar de estátua ou de vivo ou morto?".