sexta-feira, 27 de março de 2009

|::| Táticas de guerra

Toda suada, Maria abre os olhos lentamente, quase com medo de se descobrir em outro lugar. O mundo vai ganhando forma aos poucos. Como se retornando de um transe, ela respira fundo e profundamente forte. Sente-se arrepiada, e puxa o lençol, cobrindo sua nudez; cobrindo-se dele. O pesadelo. Mais uma vez. O mesmo.

As noites de domingo para segunda-feira são sempre assim. Pelo menos desde que começou a lecionar naquela escola de educação infantil. Maria se vê nua, segurando um giz branco que escorrega enquanto ela tenta, em vão, escrever seu nome numa lousa gigante, talvez infinita. Ela percebe que está sendo encarada por milhares de alunos, de todos os tamanhos, crianças, adultos, jovens, idosos, altos, magros, gordos, baixos, loiros, morenos, pretos, pardos, vestindo roupas, uniformes, calças, saias, vestidos, bermudas, camisetas, vestindo nada. Sente-se observada pelo mundo todo, e pressionada a realizar talvez uma das mais simples tarefas do mundo: escrever seu próprio nome. Mas a lousa está escorregadia. Parece molhada. Maria tenta em vão usar o giz, que fica coberto por uma substância viscosa e vermelha. "É sangue!", é o grito que Maria solta logo antes de acordar.

Semanalmente Maria está lá no consultório do seu terapeuta, contando seu pesadelo, novamente, enquanto ele a olha com uma expressão que parece um misto de tédio e fome. "Nunca mais marco consulta para o meio-dia", é a única coisa que passa pela cabeça dele. "Como era seu relacionamento com seu pai?". "Doutor, já não falamos disso na semana passada?". "Sim, mas repita por favor. Olhe para estas figuras e tente lembrar-se de situações marcantes que viveu com ele". Maria não vê sentido nessa palhaçada, e só retorna porque a escola a obrigou, depois que ela passou a apresentar uma certa violência em sala de aula. Após uma prova oral da qual vários alunos saíram com sérios distúrbios de comportamento, Maria foi chamada à direção e ameaçada de ser demitida caso não procurasse ajuda profissional. Maria se defende dizendo que o problema está na péssima educação que os alunos recebem em casa, o que exige da parte do professor um comportamento mais rígido. Segundo ela a raiz do problema é a televisão. Estranho, já que ela própria é viciada em TV. Desenvolveu até uma habilidade paranormal: é capaz de pressentir o instante exato em que um programa retorna dos comerciais.

Maria não entende porque as pessoas a acham tão estranha, afinal, considera-se uma ótima professora. Está sempre a par de todas as novas táticas pedagógicas. Faz uso da tecnologia para tornar suas aulas mais interessantes. Tem orkut, blog, myspace, facebook, msn e multiply. Recentemente passou a exigir que seus alunos usem o Twitter, e que façam pelo menos 10 postagens por dia, inclusive nos fins de semana.

O que ninguém entende é que Maria desenvolveu técnicas elaboradíssimas de contenção da poluição sonora. E tudo tem um preço, claro. "Criançada, hoje vocês preferem brincar de estátua ou de vivo ou morto?".

quarta-feira, 18 de março de 2009

|::| Sinais do fim

Ontem foi dia de prova oral na escola do João. A professora, que passara pelo menos os últimos sete dias treinando uma cara bem feia e, segundo alguns alunos, nem precisava ter treinado tanto, convidou todos a saírem da sala. A cada dois minutos um entrava e outro saía, seguindo uma ordem um pouco heterodoxa: do maior para o menor. 

O primeiro a entrar foi o Silão. Garoto forte, destemido e temido por todos os outros. Corria o boato de que o Silão já tinha andado de metrô sozinho, e não na linha verde..., mas na linha vermelha, aquela que liga o Palmeiras ao Corinthians. Do pátio ouviu-se um grito que arrepiou a todos. "Foi o Silão gritando?!", era o comentário que começou a correr entre os alunos. Sim, foi ele mesmo. Saiu da sala correndo para o banheiro. Os alunos, que já não estavam muito tranquilos, é óbvio, já que era uma prova oral, agora estavam à beira de um ataque cardíaco fulminante. Afinal, o mais valente de todos parecia ter sido dobrado e amassado como um pedaço de papel de seda. 

A fila foi andando, sempre do maior para o menor. Ouvia-se gritos, gemidos, ranger de dentes e trovões vindos do interior da sala. Já tinha aluno comentando que sua mãe dissera que isso era sinal do fim do mundo. "E o que ela disse pra fazer nessa situação?", alguém perguntou. "Não sei, acho que ela nunca passou por isso".

Aqueles que saíam da sala, permaneciam calados, provavelmente sob alguma maldição maligna dessas que se aprende nos cursos para professores. A angústia aumentava minuto a minuto, conforme iam restando apenas os mais miúdos alunos. Imagine o desespero do João, que era constantemente alvo das chacotas de seus colegas por causa do seu tamanho. Ele sabia que seria o último a ser chamado, o alvo da ira final, a vítima derradeira. Embora se julgasse preparado, por ser muito bom em conjugação de verbos, o tema da prova, João já não sabia se sobreviveria à sala. Imaginava-se entrando e vendo a língua de cada aluno pregada à parede, enquanto a professora se dirigia a ele com os olhos saltados, segurando um punhal ensaguentado na mão direita, e um garfo na esquerda. 

"Joãoooooo!". De repente, o aluno mais miúdo tremeu ao perceber que havia chegado a sua vez. Olhou para os lados, na esperança de haver outro João na sua turma. Mas não havia. Era ele, o João. João Pequeno. João, cara de anão. 

Respirou fundo. Segurou a maçaneta. Abriu a porta. Fechou os olhos e entrou. Sentiu uma moleza súbita. "João, você tá bem?". Era sua professora perguntando enquanto o abanava com uma folha de cartolina amarela. "Você tomou café-da-manhã, João? Ou tá caindo de maduro mesmo?". Ele olhou pra professora, levantou-se rápido, e tentou endireitar sua postura, fazendo cara de valente, embora por dentro estivesse se sentindo como um cordeiro em dia de sacrifício na Jerusalém antiga.

"João, vamos à prova, tudo bem?". Não, não estava bem. Se ela demorasse um pouco mais, ele molharia as calças. "Conjugue este verbo", disse a professora enquanto apontava para uma folhinha de papel. João inspirou o máximo que pôde, e começou:

"Eu excomungo.  Tu excomungas.  Ele excomunga. Nós excomungamos. Vós excomungais. Eles excomungam".

segunda-feira, 9 de março de 2009

|::| Contos do Paraíso

- Bom dia!
- Oi... bom dia! - respondi meio sem vontade.
- Você ficou sabendo?
- Do que? - agora, muito sem vontade, e levemente irritado. Afinal, a vizinha do 1503, novamente, infringia o código da boa conduta em elevadores, que em seu primeiro parágrafo proíbe expressamente as conversas. 
- Não ficou sabendo, mesmo?
- Claro que fiquei sabendo! Sou onisciente, lembra? Além disso também consigo mexer as orelhas enquanto bato palmas. Você consegue? - Ela me olhou com uma cara meio amarrada, mas a vontade de fofocar era tanta que engoliu o orgulho e engatou: Você não ficou sabendo da última da Júnia, do 770?

Júnia é a moradora mais famosa do Condomínio Paraíso. Não tenho certeza se já cruzei com ela no elevador, ou na garagem, já que não a conheço e, ao contrário da vizinha do 1503, sou muito bem educado: não falo com pessoas no elevador.

- A minha faxineira contou que ficou sabendo na última reunião da FAPOTROCA, numa conversa informal, que a Júnia está planejando uma nova morte.
- Fapotroca?
- Sim! Faxineiras portadoras de transtorno obsessivo-compulsivo anônimas.
- Ah.
- Só "ah"? Não vai dizer nada sobre a Júnia?
- Tipo o que?
- Ah...
- Ah?!
- Ah, não sei. Mas não acha estranho que ela esteja tentando de novo? Não faz nem três semanas que morreu da última vez.

Esqueci de mencionar esse fato curioso: dizem que a Júnia já morreu mais de trinta vezes. Já se enforcou, já se afogou na piscina, já morreu dormindo, fazendo musculação, tomando banho, amassando pão, torcendo roupa, lavando a louça; já cortou os pulsos, o pescoço, a virilha; já enfiou uma faca na barriga, uma tesoura, um canivete, uma colher de pau; já teve overdose por anti-depressivos, antioxidantes, alcool, óleo de cozinha, querosene; já engasgou com moedas, com feijões mal cozidos, com sementes de abacate e até com a escova de dente. A lista é longa.

- Vai apostar dessa vez? - Perguntou a vizinha, arregalando os olhos e parecendo ainda mais assustadora do que da última vez em que tentou assustar os moradores usando uma fantasia de Bozo.
- Não.
- Não?!
- Sim. É o que eu disse. Não vou!
- Mas a aposta tá acumulada há sete mortes!

O síndico, que é adepto da idéia de que os canos reprimem o livre movimento das águas e, por isso, reluta em atender os pedidos desesperados dos condôminos com problemas de encanamento, também é um viciado em apostas. A aposta "como será a próxima morte da Júnia" já está em sua vigésima-nona edição. E há sete mortes ninguém acerta.

- Não. Não vou apostar! - eu disse, enquanto sentia a primeira gota de suor a se formar em minha testa. Eu seria o cara mais feliz do mundo se o elevador fosse mais rápido. Tento não olhar para a vizinha, pra ela não pensar que quero continuar o papo.
- Você acredita em vida após a morte?
- Hein? - Só falta ela me perguntar se torço pro Corinthians. 
- Vi-da a-pós a mor-te! Já ouviu falar?
- Ah... sei. Me ligaram um dia desses oferecendo um plano especial de telefonia móvel pré-paga em que você ganha o dobro de créditos se morrer segurando o celular.

Antes que a vizinha tivesse tempo de reagir, o elevador parou no térreo e eu saí rapidamente. Levei um susto ao ver que havia dezenas de pessoas na rua, olhando pro alto. Agucei os ouvidos e escutei: "é ela!". Ainda tive tempo de olhar pra cima, ver algo vindo em minha direção e escutar o síndico gritando "Acertei!!! Ela pulou da varanda!".

Droga! Deixei o celular carregando!

quinta-feira, 5 de março de 2009

|::| Autoajuda de quinta

Peço licensa pra falar um pouco. Quer me escutar?

Consciência. Consciência social. Consciência política. Consciência ecológica. Consciência moral. Consciência espiritual. Autoconsciência. Por aí vai. Consciência de si, do mundo, do espírito...

A busca por agir, pensar ou sentir com conhecimento, com ciência, tem me levado a caminhar cada vez mais no escuro. Num escuro consciente, não posso negar, mas nem por isso menos escuro. Talvez eu tenha descoberto que o autoconhecimento é a luz que me faz ver que a escuridão existe. Vejo que a confusão existe. A dúvida existe. A incerteza existe. Mas estou certo de que se é mais feliz nesse escuro consciente do que naquela escuridão não percebida.

Não se engane. Todos estamos mergulhados na escuridão. Mas a escuridão não é necessariamente ruim. Ela é simplesmente a condição desta nossa existência. Há muitas coisas que são boas no escuro. Aceite isso. Admita.

O autoconhecer-se de que tanto se fala é um processo complicado de conhecer, cada vez mais e, por isso mesmo, cada vez menos a relação que existe entre o interno e o externo. Não sei se existe um eu interior, assim como não sei se existe um eu exterior. O que sei é que existe um fora e um dentro que estão numa constante interação que, frequentemente, é completamente desconhecida por nós. Essa falta de conhecimento, ou melhor, essa falta de ciência a respeito dessa interação nos leva a uma subutilização de nosso potencial para a vida.

Enquanto inconscientes do nosso potencial, o medo é inevitável e a coragem é bastante limitada. Limitamo-nos então a construir as nossas próprias prisões, cadeias e cercas. Você pensa que a sociedade o reprime? Você pensa que a sua família o oprime? Você pensa que a igreja o prende? Será?

O interessante deste meu processo de construção da consciência é que eu percebo que quanto mais me conheço, quanto mais tenho ciência de mim mesmo, mais incompreensível eu me sinto. Parece uma tremenda bobagem dizer tudo isso, mas conhecer a minha própria escuridão, que aqui não tem qualquer sentido negativo, estranhamente me conduz a ver, cada vez mais, que há muito de mim do lado de fora, assim como há muito do fora dentro de mim. E, nesse caminho, cada vez menos tenho podido culpar qualquer um, ou qualquer coisa, que não seja eu mesmo pelo jeito como experimento a existência. Em outras palavras, quanto mais me conheço, mais me reconheço no mundo e nas pessoas.

Percebe o quanto as pessoas do mundo precisam reconhecer-se umas nas outras? Quantos conflitos seriam evitados se soubéssemos que o lá fora e o aqui dentro são as duas faces de uma mesma moeda que se chama vida? A luta contra a vida é uma luta perdida, e tem consequências dolorosas. Reprimir a vida diminui a nossa capacidade de experimentá-la. Você percebe que a vida é rica, complexa e colorida? Por que lutarmos contra essa verdade?

Quando sabe que está no escuro você aguça a sua percepção.

É o que eu acho, pelo menos.

terça-feira, 3 de março de 2009

|::| Chegou ou saiu?

Ela chega. Toca a campainha. "Sim, é aqui!". Finalmente se encontrou. Cansada e ofegante. Ajeita o cabelo. Penteado novo. "Argh! Não gostei dessa franja". Abre sua bolsa e tira um pequeno espelho, amigo inseparável. "Estou pálida". Passa batom. "Sim... vou arriscar este". Pensa. Pensa. "Não sei..." Pensa em que? Está confusa, tentando se concentrar pra pensar melhor. "Sim ou não? Sim ou não? Sim ou não?!". Ela está diante de um caminho que se bifurca. Não sabe qual escolher. Talvez ela conheça um dos caminhos, mas pelo outro talvez chegue mais rápido. "Acho que ele conseguiu me confundir..." Respira fundo. "E agora?" Ela fecha os olhos. Anda inquieta. Dá passos apressados um pouco sem direção. Está perdida. Claro, depois de tudo, é de se esperar uma certa confusão. "E aí, o que faço?". Pensa em perguntar pra alguém, qualquer um que encontrar. "Sim ou não? Sim. Ou não? Não.... mas... e se... sim?". Olha para uma janela e imagina o que há além dela. "Será que é ali?" Vê uma bela casa. Quase tudo parece diferente da última vez. Mas algo parece familiar. Pensa em desistir de tudo e voltar. "Para onde?" Sente o estômago gelar. "Se não for, vou embora". Ela parece inconsciente da verdade das possibilidades; não sabe que entre o "sim" e o "não", entre o "é" e o "não é", existem infinitos "se's" e "talvez". Talvez por isso seja tão difícil pensar com clareza. Andou tanto que já sente o seu próprio peso. Uma hora atrás o caminho lhe parecia bem mais simples. "Ele tentou explicar tão bem.." Certamente saberia se tivesse sido mais atenta. Não é a primeira vez em que se perde por causa do seu orgulho e de sua pressa. Anda de um lado para o outro. Anda depressa. Ainda se sente atordoada com a explicação que ele deu com tanta paciência. Ela sai.