terça-feira, 2 de junho de 2009

|::| Antropologando no Hospital

Não. Obviamente não é agradável passar um dia no Hospital. Ainda mais quando não é você o doente. Se fosse, bastaria se contorcer como uma minhoca prestes a perecer num anzol, gritar como uma maritaca que cheirou cocaína, e torcer, como um corintiano apaixonado na final da série B, para que algum médico desavisado se sentisse comovido e injetasse em você um daqueles remédios pra dor de cavalo. Isso o colocaria naquele mundo de sonhos silencioso, onde o tempo passa num abrir e piscar de olhos. E você acordaria alegremente zonzo com uma enfermeira simpática (sou politicamente correto, vocês sabem, né?) perguntando se você prefere sopa de ervilha ou creme de mandioquinha com cogumelos.

Infelizmente, não foi o meu caso. Movido por aquela chama de compaixão que arde dentro de todos nós, candidatei-me a ser uma espécie de personal acompanhator plus 2000 da vizinha sozinha e velhinha que mora no apartamento de cima, a quem eu só conhecia pelos sons feitos por sua bengala agredindo o chão, que, no caso, é o meu teto.

Ela escorregara enquanto tentava salvar um vaso de flores depois que ela tropeçou, perdeu o equilíbrio, esbarrou num pratinho de enfeite que recebera de presente da bisneta, bateu com o pé sem querer numa cadeira que tombou, chocando-se com a mesinha onde fica o vaso que finalmente foi salvo enquanto ela tentava se equilibrar. Ela não salvou o pratinho feio da bisneta, fato que contribui diretamente para a melhoria do mundo, porque, convenhamos, esses pratinhos não servem pra nada, a não ser que como a rainha dos baixinhos você também veja duendes, e ainda dê de comer a eles. Penso não ser o caso da vizinha de cima, já que após me confundir com seu marido falecido várias vezes, passei a desconfiar de que além de colecionadora de pratinhos, ela também é míope, bem míope e, agora, temporariamente perneta, já que no fim das contas, nesse processo desastrado e desastroso, ela torceu o pé, quebrou três costelas e a unha do mindinho da mão esquerda.

Depois de ouvir um som diferente, atípico e não similar às pancadas da bengala da vizinha sozinha do apartamento de cima, resolvi subir e descobrir o que houve. Descobri. Descobri o que houve, descobri o que ouvi, e também descobri que a curiosidade não é boa conselheira, pois nessa brincadeira de detetive eu fui o primeiro a atender os gemidos da vizinha. Isso me colocou, inevitavalmente, devido ao meu bom e quente coração, na posição de ajudá-la a ir até o hospital mais próximo. Voltei rápido para o meu apartamento, peguei um livro, meu ipod, meu RG, meu cartão de crédito, uns cartões de visitas, meu celular e uma máscara, pra me proteger da nova gripe mortal e do cheiro do hospital.

Chamei um táxi, coloquei a vizinha numa cadeira de rodas aqui do condomínio, e a levei até o carro. Entramos e fomos. Chegando ao hospital, fui até a recepção pra entregar os documentos da vizinha e acertar as coisas para agilizar seu atendimento. Alguns minutos depois, a vizinha foi levada por umas pessoas estranhas todas de branco, e eu fiquei algumas horas esperando enquanto ela era submetida a uma série semi-interminável de exames. Depois ela me contou que passara por torturas, que colocaram uma luz forte na sua cara e perguntaram sobre sua infância, atiraram raios supersônicos nela, apertaram seus seios, enfiaram veneno na sua nádega esquerda, implantaram um chip na direita, escutaram seus pensamentos numa máquina que girava ao seu redor e que ainda perguntaram se ela usava algum tipo de medicamento.

Uma mocinha guti guti chegou e se sentou ao meu lado. Endireitei a coluna, lembrando da minha vó que sempre diz "mulher gosta de postura ereta!"... Olhei rápido pra ela e percebi que rolou uma troca energética. Quando eu ia fazer um comentário cult sobre o estado metereológico de São Paulo, uma mulher de branco, talvez uma enfermeira, talvez uma assistente de enfermagem, ou talvez uma mulher de branco, apenas, gritou um nome, que logo percebi que era da mocinha ao lado. Ela se levantou, olhou pra mim com um olhar "me espera na saída", e caminhou até a mulher de branco.

Com preguiça de ler, e vendo que já havia ouvido todas as mais de 20 mil músicas do ipod, resolvi praticar uma das artes antigas, obscuras e místicas da antropologia: escutar as conversas alheias. Foi aí que descobri coisas incríveis que acontecem num hospital.

Por exemplo, percebi que é o melhor lugar do mundo pra você descobrir tudo sobre a vida das pessoas. Os médicos e enfermeiros ficam falando alto coisas como: João, desde quando você tá com diarréia? Márcia, a flatulência é constante? Pedro, esse hálito putrefato é persistente? Joana, de que cor está seu catarro?....

Uma simpática senhora sentou-se perto de mim e puxou conversa. Disse que estava lá no hospital pela quarta vez na semana. Segundo ela, suas dores eram "combinadas". Tipo assim: na segunda dói o pé direito e o ombro esquerdo. Na terça, dá dor de estômago e de cabeça. Na quarta, dóem as juntas das pernas, e os ouvidos. Na quinta, é a vez dos dedos do pé e do cotovelo. Na sexta, ela chora com as dores da artrose do braço direito. No sábado, ela disse que descansa. E no domingo faz dança de salão. Dessa vez ela estava ali devido a uma nova dor. Desconfiava que havia quebrado as costelas dançando salsa com um tal de Ruan. Tinha um filho e uma filha. Os dois envolvidos com a área da química: a filha, engenheira de uma multinacional, e o filho, dependente, numa clínica de reabilitação. Ela estava começando a contar do ex-marido quando foi chamada por outra mulher de branco.

Poucos minutos depois, chegou um rapaz mancando. Disse pra atendente da recepção que precisava de um ortopedista, pois havia torcido o pé jogando vôlei. Simpático, sentou-se e foi logo puxando assunto com todos à volta. Contou que estava com uma dor lancinante, e que estava com medo de nunca mais voltar a andar, pois lera na internet, numa comunidade chamada "eu torci meu pé e tive que amputá-lo" que isso acontece de vez em quando. Contou que nunca sentira tanta dor e que no começo pensou que estava morrendo. Um senhor sentado próximo ao rapaz contou que já havia torcido o pé 13 vezes e que não era nada demais. O rapaz arregalou os olhos e perguntou se era normal sentir frio depois de torcer o pé. Ao que o senhor respondeu: "sim, quando está frio como hoje, é normal".

Antes de ouvir o restante da história, minha atenção foi desviada para a porta que se abriu. Foi um misto de tristeza e alegria. Alegria porque finalmente a vizinha sozinha do andar de cima estava saindo, e tristeza porque ao lado dela também estava saindo a mocinha docinho de côco. Eu me levantei sem saber se me dirigia à vizinha de cadeira de rodas, ou à mocinha de sapatos vermelhos. Foi aí que escutei uma mulher se dirigindo à mocinha e dizendo: se o mau cheiro e o corrimento persistirem até amanhã, procure um ginecologista.

Foi fácil decidir. Voltei na companhia da vizinha acidentada, feliz da vida por eu ter um coração tão generoso.