|::| Contos do Paraíso
- Bom dia!
- Oi... bom dia! - respondi meio sem vontade.
- Você ficou sabendo?
- Do que? - agora, muito sem vontade, e levemente irritado. Afinal, a vizinha do 1503, novamente, infringia o código da boa conduta em elevadores, que em seu primeiro parágrafo proíbe expressamente as conversas.
- Não ficou sabendo, mesmo?
- Claro que fiquei sabendo! Sou onisciente, lembra? Além disso também consigo mexer as orelhas enquanto bato palmas. Você consegue? - Ela me olhou com uma cara meio amarrada, mas a vontade de fofocar era tanta que engoliu o orgulho e engatou: Você não ficou sabendo da última da Júnia, do 770?
Júnia é a moradora mais famosa do Condomínio Paraíso. Não tenho certeza se já cruzei com ela no elevador, ou na garagem, já que não a conheço e, ao contrário da vizinha do 1503, sou muito bem educado: não falo com pessoas no elevador.
- A minha faxineira contou que ficou sabendo na última reunião da FAPOTROCA, numa conversa informal, que a Júnia está planejando uma nova morte.
- Fapotroca?
- Sim! Faxineiras portadoras de transtorno obsessivo-compulsivo anônimas.
- Ah.
- Só "ah"? Não vai dizer nada sobre a Júnia?
- Tipo o que?
- Ah...
- Ah?!
- Ah, não sei. Mas não acha estranho que ela esteja tentando de novo? Não faz nem três semanas que morreu da última vez.
Esqueci de mencionar esse fato curioso: dizem que a Júnia já morreu mais de trinta vezes. Já se enforcou, já se afogou na piscina, já morreu dormindo, fazendo musculação, tomando banho, amassando pão, torcendo roupa, lavando a louça; já cortou os pulsos, o pescoço, a virilha; já enfiou uma faca na barriga, uma tesoura, um canivete, uma colher de pau; já teve overdose por anti-depressivos, antioxidantes, alcool, óleo de cozinha, querosene; já engasgou com moedas, com feijões mal cozidos, com sementes de abacate e até com a escova de dente. A lista é longa.
- Vai apostar dessa vez? - Perguntou a vizinha, arregalando os olhos e parecendo ainda mais assustadora do que da última vez em que tentou assustar os moradores usando uma fantasia de Bozo.
- Não.
- Não?!
- Sim. É o que eu disse. Não vou!
- Mas a aposta tá acumulada há sete mortes!
O síndico, que é adepto da idéia de que os canos reprimem o livre movimento das águas e, por isso, reluta em atender os pedidos desesperados dos condôminos com problemas de encanamento, também é um viciado em apostas. A aposta "como será a próxima morte da Júnia" já está em sua vigésima-nona edição. E há sete mortes ninguém acerta.
- Não. Não vou apostar! - eu disse, enquanto sentia a primeira gota de suor a se formar em minha testa. Eu seria o cara mais feliz do mundo se o elevador fosse mais rápido. Tento não olhar para a vizinha, pra ela não pensar que quero continuar o papo.
- Você acredita em vida após a morte?
- Hein? - Só falta ela me perguntar se torço pro Corinthians.
- Vi-da a-pós a mor-te! Já ouviu falar?
- Ah... sei. Me ligaram um dia desses oferecendo um plano especial de telefonia móvel pré-paga em que você ganha o dobro de créditos se morrer segurando o celular.
Antes que a vizinha tivesse tempo de reagir, o elevador parou no térreo e eu saí rapidamente. Levei um susto ao ver que havia dezenas de pessoas na rua, olhando pro alto. Agucei os ouvidos e escutei: "é ela!". Ainda tive tempo de olhar pra cima, ver algo vindo em minha direção e escutar o síndico gritando "Acertei!!! Ela pulou da varanda!".
Droga! Deixei o celular carregando!
3 comentários:
ahaha! Gostei da piada: Vida após a morte? Corinthians?
Quem assistiu o jogo de ontem sabe do que estou falando.
ufaaa..
nao assisti o jogo ontem. Achei que estava louco, rs!
Nossa, levando em conta que vc escreveu isso depois do fato, então, pode ser que exista vida após a morte...
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